"Gilberto Gil em Desterro" (Guache sobre papel, 2023) |
"Gaivota menina
De asas paradas
Voando no sonho
D'aguas da lagoa
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o vento segura
Voa numa boa
Gaivota na ilha
Sem noção da milha
Ficou longe a terra
Gaivota menina
Gaivota querida
Voa numa boa
Que o alento segura
Voa numa boa
Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti
Gaivotar seria poder te eleger para mim
Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda
Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim
Sobrevoar meus temores, meus amores
E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos
Dos teus sonhos de subir
De subir aos ares
Gaivota querida
Gaivota menina
Pousa perto de mim"
- GILBERTO GIL. "Gaivota" ("Refavela", 1977).
À
Ignez Gosmar de Souza, minha avó açoriana.
Maria Bernadete de Souza, minha mãe cabocla.
Jorge Silviano, meu avô xoclengue.
Todos catarinenses.
Todos brasileiros.
In memorian.
* * *
Eu quero contar da forma o mais simples possível uma história.
Escolho a forma do ensaio biográfico porque sinto que, para mim, esta
seja a linguagem mais adequada.
O ensaio é um tipo de texto literário que permite ao autor a fluidez
da divagação, o vaivém nos tempos, as anacronias, as liberdades de
memória e imaginação.
Falarei de temas que me são tão sensíveis e pessoais que não quero e
nem posso restringi-los a exigências de formas fixas ou
estereotipadas.
Não quero falar de certos golpes pessoais e coletivos com a hipocrisia
de um historiador.
Não quero fingir uma objetividade impossível.
* * *
Era 1976 e estávamos no alvorecer do projeto histórico neoconservador
que desembocaria, anos depois, em Margareth Tatcher, Ronald Reagan e
José Sarney. Em janeiro, à luz de um dia de verão, o ditador
brasileiro General Ernesto Geisel usou o AI-5 para cassar os mandatos
de dois deputados estaduais paulistas acusados de terem recebido apoio
eleitoral do PCB (partido banido do sistema político brasileiro desde
1956 e ferozmente perseguido a partir do golpe de 1964). Por seu
turno, um pouco mais afastados do sol, nos porões dos quartéis,
delegacias e outras repartições públicas, homens, mulheres, velhos e
crianças eram mortos e torturados em nome da ideologia de Segurança
Nacional. O secretário de estado estadunidense Henry Kissinger, por
sua vez, visitou o Brasil em fevereiro e, ao que parece, considerou
que todas as nossas instituições estavam funcionando perfeitamente.
Enquanto isso, na praiana e quase sempre pacata cidade de
Florianópolis, ilha capital de Santa Catarina, o ex-exilado político
Gilberto Gil, junto aos seus companheiros de grupo “Os Doces
Bárbaros”, cruzavam a ponte Hercílio Luz, cartão postal do estado. A
juventude liberal e progressista da cidade, muitos filhos e filhas dos
que sofriam in loco as conseqüências da ditadura, estava ansiosa pela
visita. O show seria um acontecimento extraordinário já que os
artistas nacionais, naquela época, dificilmente paravam por aqui.
Florianópolis não estava prevista de início no mapa da turnê da banda.
Essa inclusão foi exigência direta de Gilberto Gil e Caetano Veloso.
No documentário “Os Doces Bárbaros” (Brasil, 1976), de Jom Tom Azulay,
há um trecho de áudio de Caetano dizendo que ambos “gostavam muito” da
cidade. De fato, aspectos da cultura popular e beleza da paisagem
natural da Ilha de Santa Catarina tem boas famas seculares. No mais,
pelo seu passado portuário, Florianópolis, de certo modo, reproduz em
micro-escala a própria experiência cultural brasileira. Aqui, talvez,
o Brasil do litoral sul tenha encontrado a sua síntese mais
representativa. Era, portanto, compreensível o interesse e apreço dos
então jovens tropicalistas por esse lugar que, no século 19, era
chamado de “a chave do Brasil meridional”.
Mas Florianópolis tinha - e ainda tem - um outro lado. Florianópolis,
antiga “Cidade de Desterro”. Florianópolis, a cidade que depois dos
massacres e chacinas praticadas pelo Exército Brasileiro em 1894,
tornou-se a “Cidade de Floriano”. O nome da capital de Santa Catarina
é uma humilhação imposta por um ditador militar a um povo rebelado e
vencido.
Essa cidade , quando Gilberto Gil passou por aqui, em1976, resolveu
deixar bem claro a ele, a Caetano Veloso, à Maria Bethânia, à Gal
Costa e a todo o seu público que não aceitaria nada daquilo que esse
segmento da juventude brasileira representava naquele momento: os
ventos de Maio de 1968, o desejo de liberdade e livre-expressão, a
“subversão comunista” inimiga dos interesses da Nação, da Ordem e do
Progresso. Essa cidade que é a capital de um estado que tem como hino
a letra de um poeta romântico passadista, anacrônico no pior sentido
do termo, chamado Horácio Nunes Pires, inimigo fidagal de Cruz e
Sousa. Essa cidade que em 1976 ainda ouvia Bossa Nova e recebia de
braços abertos, na figura de Luís Henrique Rosa, a Broodway, na figura
de Laisa Minelli. Essa cidade que não tem crítica cultural, que não se
interessa em apresentar uma visão própria do país. Essa cidade tão bem
representada no filme “Desterro” (1992) e “Novembrada” (1998), ambos
do cineasta Eduardo Paredes, é uma cidade desde sempre condenada a ser
silenciada, calada.
E foi exatamente essa função que os agentes daas forças policiais
fizeram, naquele dia de 1976, quando bateram nas portas de Gilberto
Gil, Caetano Veloso e seus amigos técnicos de som e músicos. Foram dar
uma “batida”. Fazer uma “vistoria de rotina”. Ou seja, o xerife do
turno foi mostrar aos forasteiros quem realmente mandava na cidade. E
eram o bons costumes.
Gil, na ocasião, estava, segundo o próprio delegado, em depoimento
registrado no filme “Os doces bárbaros”, hospedado no quarto 306 de um
hotel na Avenida Hercílio Luz. O músico bahiano trazia consigo o
equivalente a três cigarros de maconha (um cigarro preparado e mais
quantidade suficiente para se fazer mais um ou dois baseados). Isto
foi o suficiente para ele ser detido, encaminhado para julgamento e
condenado à internação no Instituto Psiquiátrico São José. Lugar onde,
em 1976, a minha mãe acabava de ingressar no quadro dos trabalhadores
responsáveis pela cozinha.
Minha mãe chamava-se Maria Bernadete de Souza. Ela era filha de
camponeses da antiga região de Barracão, no interior de Santa
Catarina. Minha vó era de ascendência açoriana e meu avô um xoclengue
“aculturado”. Um “bugre” como os colonos da região diziam à época e
hoje em dia. Maria Bernadete foi criada por uma família de áusteros
colonos alemães de São José, cidade que abriga uma das mais antigas
comunidades alemãs do Brasil. Ela foi “dama de companhia”, “ama seca”
da sua madrinha, a matriarca dessa família, durante décadas. Toda a
sua mocidade. Por conta do seu trabalho doméstico em tempo integral,
jamais teve acesso pleno à instrução formal. Ela não “viveu”. Ao menos
não no mesmo sentido que as filhas da sua madrinha. Jovens herdeiras e
de sangue germânico. Sua alforria temporária chegou em 1972, por conta
do seu casamento com Luiz Carlos de Souza, meu pai. Da sua educação
moral prussiana, austera, minha mãe trouxe consigo certo sentimento
com relação à educação e cultura que meu pai, infelizmente, não havia
podido desenvolver como décimo segundo filho de uma lavradora viúva e
analfabeta. Este detalhe haveria de ser muito importante na nossa
história familiar posterior.
* * *
Uma das conseqüências de se exercitar a reflexão histórica é que os
distanciamentos afetivos com relação aos fatos passados vão
diminuindo. Em outras palavras, nós começamos a amar e odiar de modos
cada vez mais vívidos coisas e gente morta e desaparecida há muito
tempo.
Nasci em Florianópolis, na Maternidade Carmela Dutra, em 1982. Sou,
como dizem os nativos da ilha, “daqui”. Não sou “de fora”. Sou
“daqui”. E o que isso quer dizer para um “nativo”?
Significa dizer que estou enraizado em alguma comunidade local.
Florianópolis, uma ilha tropical de urbanização recente, ainda lembra
dos seus tempos de vilas de pescadores e agricultores semi-isoladas.
Nessas vilas, distanciadas umas das outras por caminhos e trilhas,
todos os moradores se conheciam. Todos os vizinhos eram conhecidos e
todas as caras, nomes, funções, modos, linguagens eram mais ou menos
familiares. Ser daqui, portanto, era algo que tinha a ver com
reconhecimento.
Por alguma razão eu nunca convenci ninguém do fato de eu realmente ser “daqui”.
Há um tempo atrás, por exemplo, num domingo à tarde, eu e minha esposa
visitamos a Igreja da Freguesia da Lagoa da Conceição, no norte da
Ilha. A igreja é uma das construções mais antigas da cidade. A certa
altura fomos abordados pelo padre, que nos confundiu com turistas
(sempre nos confundem com turistas em Florianópolis).
- Vocês são de onde?
- Eu sou de Nova Prata, no Rio Grande do Sul. Ele é daqui.
- És daqui?
- Sim. Sou daqui.
- Daqui onde?
- Nasci em Florianópolis, mas me criei no continente. Em São José.
- Humm.
O padre aceitou minhas explicações, mas senti durante toda a nossa
conversa uma atitude de estranhamento e até desconfiança. Por alguma
razão o homem, um velho “nativo” enraizado nos costumes, na língua,
nos valores locais, não me reconhecia como um igual. Por que seria?
Havia, há algo em mim que não me compatibiliza com o senso comum dos
nativos acerca do que é ser daqui. Demorei para compreender, mas hoje,
depois de uma série de outras experiências, compreendi finalmente: há
um elemento fenotípico importante na minha constituição física que
contribui em muito para esse efeito. Meu pai vem de uma linhagem
familiar quase toda constituída por descendentes de açorianos do
litoral. Minha mãe, contudo, era uma mestiça do planalto. Filha de mãe
açoriana e pai xoklang. Meus ancestrais eram denominados bugres pelos
antigos colonos europeus. Bugres eram homens e mulheres remanescentes
de antigos povos nômades que viviam no interior do estado por ocasião
da chegada dos primeiros invasores e colonos europeus a esta parte do
continente. Herdei do meu avô materno, Jorge Silviano, um índio
apartado de sua comunidade ainda criança, os traços do rosto e os
modos. Não pareço fisicamente com um europeu, portanto. Pareço com um
“bugre”. Um “bugre” com maneirismos e linguagem de “branco”, mas
ainda assim um “bugre”. Ora, não existem “bugres” na Ilha. Os “daqui”
já os expulsaram há tempos. Como, então, eu poderia ser “daqui”?
* * *
O catolicismo e o racismo são elementos estruturantes da mentalidade
ilhéu. Se complementam e reforçam um ao outro. Ama-se o Papa como
verdadeiro representante de Deus na Terra (cf. registros da visita de
João Paulo II à Florianópolis, em 1992) e despreza-se o negro e
indígena como subhumanidades (cf. a tradição de políticas municipais
higienistas e persecutórias aos pobres e moradores de rua). Cresci
numa família operária da periferia da grande Florianópolis. Meus
parentes eram e são produtos dessa sociedade e cultura. Vivi na carne
todas as benesses e desgraças de se pertencer a uma cultura de base
colonial açoriana no sul do Brasil.
Minha avó, por lado paterno chamava-se Ignez Gosmar de Souza. Ela era
parteira e aposentou-se como lavradora. Morreu em 1991, aos 90 anos.
Convivi com ela do meu nascimento até os nove anos de idade. Era uma
mulher dura, áspera e muito devota. Muito apegada ao Sagrado Coração
de Jesus, Nossa Senhora e São Jorge. Seu catolicismo, contudo, não era
o oficial. Era o catoclicismo popular do interior de Santa catarina. O
mesmo que inflamou a imaginação dos Doze Pares de França, no
Contestado da sua infância e da dos nossos ancestrais.
Com ela aprendi a pedir benção e temer a Deus. Apesar de analfabeta,
tinha uma reverência muito grande ao saber letrado. Foi dela que
recebi de presente um dos meus primeiros livros: “Na Terra, no mar e
no espaço”, do educador gaúcho Hilário Ribeiro Jr., um livro escolar
do final do século XIX. Era uma edição original, com mais de oitenta
anos na época.
Minha avó me relegou esse alfarrábio como se fosse um tesouro.
Ela me disse:
- Pega, pra ti. Tu vais precisar.
E muitos anos depois eu realmente precisei desse livro. Ele foi a
primeira fonte que analisei como estudante na graduação do curso de
História da Universidade Federal de Santa Catarina.
Ainda o guardo.
Minha avó tinha o respeito pelas letras e educação formal que só os
pobres sabem ter num país como o nosso.
Por outro lado suspeito que tenhamos em nós algo da influência
cultural-religiosa do judaísmo ibérico medieval.
O amor judaico aos livros de algum modo parecia reverberar na mãe de meu pai.
E esse amor também me foi uma herança açoriana do litoral catarinense.
* * *
Açorianos, alemães, xoclengues, bantos nos legaram suas contradições.
Repetimos no nível micro os mesmos princípios que nos regem no macro.
Rejeitamos, desconsideramos, negamos a existência de certas
alteridades. Não reconhecemos certos outros. Eu mesmo nunca me vi como
mestiço, apesar de ser chamado quando criança de “Juruna”, em alusão
ao primeiro deputado indígena da república brasileira, em evidência na
mídia da época. Em casa, por sua vez, ainda muito jovem eu já percebia
a existência de certo tratamento diferenciado dos adultos com relação
a mim e minha irmã. Sobretudo por parte do meu pai e de outros
familiares quase sempre em benefício da minha irmã. Não por
coincidência ela é loira, possui bonitos olhos claros e não lembra em
nada os nossos antepassados xoklang. Meu pai chamava-a de “Alemoa”,
quando criança. No início da minha adolescência começamos a ter
problemas de relacionamento e nos afastamos. Desde então não
conseguimos mais conviver. Repetimos, portanto, no nível micro os
mesmos princípios que nos regem no macro. Em outras palavras: Santa
Catarina reproduz os princípios gerais que determinam a dinâmica da
sociedade brasileira desde o século XVI. Nós, os “daqui”, reproduzimos
em linhas gerais os mesmos princípios que determinam a dinâmica da
sociedade catarinense desde o século XVIII. E tudo isso, por sua vez,
deságua na negação de qualquer coisa que não as imagens do colono, da
colônia e da colonização. Tudo acaba por negar o outro.
* * *
Minha mãe tinha 33 anos em 1976, quando Gilberto Gil e os Doces
Bárbaros chegaram à Ilha de Santa Catarina. Ela trabalhava na função
de cozinheira junto ao Instituto Psiquiátrico São José, clínica onde
Gilberto Gil cumpriu alguns meses de internamento compulsório para
“desintoxicação”. Aquele foi o primeiro emprego com carteira assinada
que ela obteve na vida. A independência econômica conquistada nesse
trabalhoemprego lhe valeria força moral e econômica suficientes para
garantir, a despeito de todas as adversidades, a educação escolar de
minha irmã mais velha (em 1996, 20 anos depois, minha irmã foi a
primeira da família a conquistar um diploma universitário).
Minha mãe foi uma mulher bonita e mais ainda em 1976.
Uma cabocla morena de olhos verdes.
Lembrando desse tempo em que conviveu com minha mãe e outros
funcionários do Instituto São José, Gilberto Gil escreveu uma música
que sairia no seu disco “Refavela” (1977). Nesse álbum, o artista
incluiu algumas músicas que rememoram a sua passagem por
Florianópolis, essa cidade que ele achava tão bonita e que ele quis
tanto visitar com seus amigos em 1976.
A música “Sandra”, sexta faixa do disco “Refavela”, é dedicada aos
trabalhadores do Instituto Psiquiátrico São José. Eu gosto de pensar
que uma daquelas muitas mulheres chamadas Maria que ele cita na sua
música seja a Maria minha mãe. Ela era fã de Ronnie Von, o mais
tropicalista dos ídolos jovens do seu tempo, e adorava música
brasileira. Ela teria adorado poder ter ido ao show dos “Doces
Bárbaros” e visto de perto Gilberto Gil sob outras condições que não a
de interno penitenciário. Ela morreu em 2012, aos 69 anos de idade.
Ainda tinha olhos verdes muito vivos e inteligentes, mas nunca
entendeu bem porque haviam feito aquilo com uma pessoa tão boa e um
artista tão importante.
Eu entendo, mãe.
Agora, todos entendemos.
A cidade inteira entende.
Lagoa do Perí,
Nossa Senhora do Desterro,
Ilha de Santa Catarina,
Litoral sul brasileiro,
26 de dezembro de 2023