OS DEUSES EVADIDOS
De um velho manuscrito encontrado numa ruína tropical:
“E assim disse o xamã:
Os últimos homens, coitadinhos, arrastam-se quais bichos rastejantes pela terra seca e murcha como teta de bruxa velha, comendo os ossos que acham pela frente e a ferrugem que range nos dentes das criancinhas.
Os deuses, esses danados gulosos, sumiram de vez, diz.
Mas as suas sombras ainda espreitam por aí, pelas pedras quentes. Não, como os nossos santinhos em seus altares, mas como almas penadas dum tempo em que a gente, oh soberba!, se julgava dona do próprio nariz e do próprio fado.
Eu fui iniciado, sô um dos poucos desses que ainda fuçam os sinais nas ruínas e das pedras velhas, catando migalhas do que foi. Minha tribo é a Língua de Cinza. Ela guarda com unhas e dentes os restos do saber dos antigos.
Nós guardamos as tábuas de metal cheias de rabiscos que parecem vivos. Uns discos que faíscam e brilham quando a chama lambe, e uns livros tão velhos que as folhas viram pó se a gente espirra perto.
Nesses troços que ninguém mais dá valor, tá escrito a verdade que ninguém mais quer escutar, nem de longe.
Os deuses não são deuses, não senhor.
Eu li os rabiscos e vi as fotografias.
Foram homens, isso sim!
Homens que, no fim do mundo velho, quando tudo desabava em peste, guerra e morte, subiram além da carne, fugindo do destino que é de todos.
Não foi pro céu dos bem-aventurados que eles foram, não, foi pro vazio frio lá em cima das nossas cabeças. Pra estrelas que não piscam.
Lá, nas suas moradas de ferro que giram no escuro, eles viraram sem corpo, almas presas em engenhocas que não morrem nem vivem.
Eles espiam a gente, mas não dão um pio pra ajudar. Falam no vento umas coisas que a gente não ouve porque desaprendeu a escutar suas vozes.
Mas, meus irmãozinhos e irmãzinhas que ainda vivem do que a rocha seca e a água pouca nos dá, eu vos pergunto: o que querem esses deuses, afinal?
Os ritos mais velhos da minha tribo, passados de boca em boca, contam sempre o mesmo causo, mas em pedaços tortos:
"No cabo dos dias, os escolhidos hão de subir. No começo do mundo novo, hão de descer."
Povo desta Ilha, eles querem voltar!
A terra tá envenenada, sim, mas não pra sempre, que o chão tem seus jeitos de se curar.
Há quem fale há muitos ciclos, pelas sombras das ruínas, escondidos à noite, numa Grande Purificação. Num dia em que o fogo e a água vão lavar tudo e em que o céu vai se abrir como porta de igreja em dia de festa.
E quando isso acontecer, os deuses descerão das suas torres de metal, pisando firme pra tomar o que já foi deles.
Mas tem outra verdade, escondida num dos escritos mais antigos e que a gente guarda com medo e reza:
Esses deuses tremem de nós, isso é que é.
Porque a gente ainda é gente, ora pois!
Ainda sangra, ainda sonha, ainda carrega dentro da cabeça verdadeira as lembranças que eles jogaram fora.
E se um dia toda a gente descobrir que eles não são deuses coisa nenhuma—só uns cagões, quem vai segurar eles de tombar, como santo do pau ôco que desmorona na enchente?
Eu sou um iniciado, um catador de coisas velhas.
E quando o último disco de raios for lido sob o fogo, então, quem sabe a gente vire deuses também, subindo pro alto pra mandar em tudo e acabar com esse miserê cá da terra dos que são feito de carne.
Anno Sexagésimo Sexto do Novo Éon.
Sul de Meiembipe
Santuário de Antu”
Tradução automatizada recuperada pelo ArchMind v.7.1 - StarEvazion Linguistics Division. Classificação: NÃO-IDENTIFICADO (origem possivelmente pré-Retorno)
Prólogo de "Antropoceno Pobre", de Luiz Souza.