ERROS SISTÊMICOS
Este é um livro de contos que habita as fissuras de um mundo em processo de autodestruição. Nele, construo narrativas fragmentadas, ambientadas em um tempo distópico não claramente definido, uma espécie de não tempo, onde humanos, fantasmas, animais falantes e máquinas decadentes lutam por sobrevivência, memória e identidade. Os personagens são restos, metafóricos ou não: um poeta negro invisibilizado, uma mãe que carrega os ossos do filho em uma caixa, um boitatá decadente que lembra seu passado glorioso, um ciborgue lumpem viciado em pilhas elétricas. Busco corroer a linguagem tanto quanto o cenário. Misturo português arcaico, gírias reais ou inventadas, termos técnicos e falhas gramaticais deliberadas. A ambição final desse método é assemelhar ao máximo possível o texto a algum tipo de ruína, pergaminho carcomido ou filme granulado.
Tenho chamado a esse procedimento de literatura glitch. Uma poética do erro sistêmico que importa para a escrita o conceito de “erro digital” - a falha que revela o código oculto por trás da imagem perfeita. Assim como um vídeo corrompido exibe pixels distorcidos ou um áudio falhado destaca ruídos subliminares, a literatura glitch busca expôr e valorizar esteticamente as fraturas de todos os sistemas hegemônicos. Dentro ou fora da arte.
É uma proposta radical que, se levada ao extremo, poderia reduzir a obra a simples ruído branco ou distorção visual sem sentido.
Não é o que propomos.
Apesar de flertar com certas expressões do niilismo estético (Dadaísmo, Absurdismo, Punk...), a literatura glitch não nega a legibilidade, mas propõe um aprofundamento do sentido, sobretudo histórico, por meio da: 1) Desorganização de estruturas (rompimento com linearidades temporais ou narrativas e mistura de gêneros); 2) Incorporação de falhas (erros gramaticais calculados, lacunas, repetições); 3) Reciclagem de “detritos” culturais (folclore local, história dos marginais, subprodutos midiáticos); 4) Desafio à autoridade dos arquivos oficiais (busca por dar voz a tudo o que foi apagado e legado ao esquecimento histórico e cultural).
A sensibilidade glitch deste livro encontra-se, deste modo, nas suas narrativas corrompidas, como em “O Vidente”, que repetem cenas com variações mínimas, como um arquivo que trava e reinicia, mostrando a impossibilidade de uma história única.
Outro aspecto que denota seu caráter glitch é a linguagem “falhada” do livro. Em “Os Deuses Evadidos”, por exemplo, o português barroco ao estilo de Antônio Vieira, se mistura a um pastiche de português popular, também colonial, inspirado por Franklin Cascaes em seu “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina”, gerando um anacronismo proposital - um "erro" que, ao mesmo tempo que cria uma variante ficcional do português, traz também em si uma reflexão sobre diferentes aspectos da historicidade da língua.
Outro aspecto glitch da obra é a sua preferência por personagens outsiders, figuras como G-G (o ciborgue viciado em pilhas) ou o “Menino Loiro” (um fantasma aristocrata esquecido) são restos de sistemas fracassados (o capitalismo tardio, a monarquia escravista), mas a sua permanência para além desses sistemas os torna potentes como testemunhos. Glitches que revelam a precariedade de qualquer ordem e que, ao revelá-la, ganham potencial para orientar novas elaborações de estruturas.
Por fim, talvez o aspecto mais glitch desta coletânea seja a sua colagem de temporalidades. O livro embaralha passado, presente e futuro, como no conto “Os Vagabundos da Praça XV”, onde soldados do século XIX vagam ao redor do seu próprio monumento, esquecidos pela história e presos num limbo entre memória e esquecimento.
Assim, para além da literatura e já pensando o tempo desde o ponto de vista da história, pode se dizer que há na exploração dos erros sistêmicos, os “glicthes”, uma alternativa aos modos da historiografia convencional.
Se a história oficial é um sistema que apaga dissonâncias, exercícios intelectuais e estéticos como “Antropoceno Pobre” propõe uma perspectiva marginal feita de falhas. Aqui não se escreve sobre o apocalipse; mas deixa-se o texto ser uma expressão do seu objeto - um arquivo corrompido onde o marginal, o esquecido, o recalcado vazam. Essa estratégia não serve apenas à literatura: é um método possível para hackearmos também a historiografia. Assim como é possível usarmos fábulas distópicas para falarmos de racismo e colonialismo, poderíamos usar glitches - personagens marginais (não só marginalizados), documentos menores ou apócrifos, autores esquecidos, arquivos de província, folclores e mitologias contemporâneas, etc. - para reescrever histórias silenciadas ou desconsideradas.
“Antropoceno Pobre” é, deste modo, um laboratório e manifesto glitch. Nele, a falha não é defeito, mas resistência pessoal e coletiva.
Luiz Souza
Florianópolis, abril de 2024.
Prefácio ao livro "Antropoceno Pobre", de Luiz Souza.
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