sexta-feira, 19 de março de 2021

JOÃO DE SOUZA

 


"Mas, que importa tudo isso?! / Qual é a côr da minha fórma, do meu sentir?" 

JOÃO DA CRUZ E SOUZA

(1861-1898)




À boêmia morta de Desterro.



Rua João Pinto, Centro de Florianópolis. 22h.

É 19 de março. A noite está quente, abafada e sem vento.

Na Travessa Ratcliff, alguns homens de meia idade e cara de funcionários públicos, tocam um velho pagode. No calçadão, em frente a uma mesa cheia de universitários, uma mulher muito magra, suja e despenteada dança de olhos fechados. Ela é HIV positivo e desde os 15 anos se prostitui e mora na rua. Os universitários não reparam nela.

O som da música chega até o Bar do Milton.

- Ô, neguinho!

- Hum?

- Ô, neguinho...

- Neguinho é o cu da tua, mãe.

- Ô, neguinho deixa eu te perguntar um negócio...

- Meu nome é João.

- Tá, tá! Deixa eu te perguntar uma coisa...

- Te conheço, por acaso?

- Ô! tranquilo, bicho, tranquilo! Vou mandar descer uma aqui pra gente.

- Eu não bebo.

- Vai te fude!

- Eu não bebo, caralho!

- Ah, é? Tás tomando o que ai, então?

- Água.

- Ah, vai te fude!

- Vai te fude, tu! olha aqui o copo e vê se não, ó!

- Tá, tu vens pro bar pra quê então, ô?

- Não te interessa, seu otário. O que é que tu queres, o quê?

- Ô, que bicho ignorante...

- Tá, tô vazando...

- Ô, senta ai, caralho!

- Ô, tira a mão, filha da puta! Larga o meu braço.

- Te acalma ai...

- Vai tomar no cu, vai! O cara passa o dia todo tendo que aguenta desaforo de branco arrombado, ai quando senta pra descansar ainda tem que ficar ouvindo merda de branco bebum? Tás me achando com cara de quê, ô? Sai fora, sai!

- Tá, deixa eu te perguntar...

- Fala, fala! Depois te manda.

- Tá, tá, escuta...

- Hum.

- Eu tava ali, com os bicho, ali na mesa...

- Hum.

- Daí a gente reparou que tu tava aí, escrevendo um negócio aí.

- E o que é que tem? Num pode escrever agora?

- Ô, rapaz, baixa a bola! Tô falando contigo na boa.

- Na boa é o caralho! Te arranca, te arranca!

- Ô, neguinho, deixa eu terminar.

- Teu cu com neguinho! O meu nome é João de Souza!

- Ô, porra! Tô falando pra tu deixar eu deixar terminar, caralho! E baixa essa tua bolinha ai que eu não tô de brincadeira não!

- …

- Tu és de onde, tu?

- Sou daqui.

- Daqui onde, porra?

- Ali do Morro da Cruz.

- És filho de quem?

- Da Dona Carolina e do Seu Guilherme.

- Hum.

- Eles moram ali perto d...

- O Guilherme pedreiro?

- Esse mesmo.

- E que porra é essa aí que tu tás escrevendo, aí?

- Não é nada.

- Não é nada é o caralho. Dá aqui essa porra.

- …

- Que merda é essa?

- É... São...

- Tu és viado?

- Não.

- Ah, tu és viadinho sim! Ô, Neto! Ô, Beiço! Chega mais!

- Vai te fuder! Dá aqui essa porra!

- Ui, que meda! Tás nervosa?

- Vai toma no olho do teu cu, vai!

- Ah, pára! Tá, tu tás aí sentado sozinho a noite toda tomando água e escrevendo pra quê, então!? Tu tá de sacanagem com a raça, tu? És caguete, por acaso? Tás aqui só manjando a rapaziada pra que, bróder? Diz aí.

- Que viagem. Nada a ver...

- Ah, não! Então que merda é essa? Tu faz o quê?

- Como assim?

- Tu trabalhas no quê?

- Tás querendo saber o quê exatamente?

- Não te faz! Eu quero saber com o que tu trabalhas.

- Tu quer saber com o que eu trabalho ou com o que me fazem trabalhar?

- Ô, porra! Eu quero saber com o que é que tu trabalhas! Como é que tu te sustentas! Tás aí escrevendo: então tu és professor, por acaso?

- Não. Já fui, mas não sou mais.

- Fazes o que então, porra!?

- Tu queres saber como é que os caras me fodem todo dia, é isso!?

- ...?

- Tu queres saber como é que me obrigam a fazer direto um servicinho de merda, que ninguém quer fazer? Tu queres saber como é que me exploram? Como é que me torturam? Como é que me martirizam? Como é que me matam de raiva, amargura e tédio todo santo dia, das 8h às 18, só com um intervalinho de merda pra eu comer um rissoles!? É isso o que tu quer saber!? Tu tás querendo que eu te diga como é que me tiram a vida, a juventude e a saúde de manhã à noite, todo dia, todo dia, todo santo dia, em troca de uns trocados? Em troca de uma porra dum salário-mínimo!? É isso!? Tu queres saber isso!?

- Ô, relaxa. De boa, de boa. É, é. É isso mesmo. Qual é o teu trampo? Fazes qual serviço?

- Sou caixa numa loja ali do lado.

- Trabalhas de vendedor, então?

- Não.

- Como assim? Acabasse de dizer...

- O meu trabalho não é esse.

- Acabasse de dizer que era, seu demente!

- Isso é o meu trampo. Ganha-pão. Serviço.

- Tá, mas então qual é que é o teu trabalho, porra!?

- Sou escritor.

- És o quê?

- Escritor.

- …? Não entendi.

- Eu escrevo e leio poesia nos bares aqui do centro.

- Ah, tô ligado.

- É isso.

- Só...

- ...

- Tens seda?


Um vento morno começa a soprar. Vai chover logo. No calçadão, a mulher magra e suja grita com alguém invisível. Os garçons, um mulato careca e simpático e outro loiro cheio de espinhas, começam a retirar as cadeiras da rua. Um carro de polícia passa lentamente com o giroflex ligado. Os PMs têm ordem de esvaziar essa área do centro até 11h. Eles fazem isso todas as noites.

É 19 de março e o poeta faz aniversário. Ele acaba de completar 20 anos e quer fazer nome. João da Carolina. Não “neguinho”. João do Morro. Não “tição”. João da Cruz. Não “macaco”. João de Souza. Não...

Um nome.

João quer ter um nome.



Luiz Souza


CAMPECHE, 14, mar. 21.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Porra, bicho! Que texto!
      Por favor, leitores. Dois minutos de wikipédia e quetais para entender as referências a Cruz & Souza.

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