À memória de Franklin Cascaes.
O Underground Rock Bar, ou Bar do Frank, era um estabelecimento pequeno e sujo, mas honesto. Muito honesto.
O Under ficava bem em frente à Lagoa da Conceição. Próximo às dunas.
Existem muitas histórias sobre a Lagoa da Conceição.
Histórias antigas.
- Daê.
- Olá.
- Massa essa banda aí, né?
- Tu gosta?
- Gosto.
- Então talvez seja.
- Massa.
- …
- Tá sozinha?
- Não.
- Tá com uma galera?
- Pode-se dizer que sim.
- Pode crê.
- …
- E cadê a raça?
- Os meus amigos?
- Isso.
- Por aí.
- Entendi.
- …
- Eu nunca te vi por aqui. És de onde?
- Sou daqui.
- Sério? Não parece.
- Não, né? Mas sou.
- Da hora.
- …
- Queres uma cerveja? Vou lá pegar pra nós.
- Não.
- Num bebes?
- Por que eu beberia?
- Saquei. De boa, de boa. Tranquilo.
- …
- Fazes o quê?
- Eu? O que tu acha?
- Sei lá... acho que tu tem cara de ser de Humanas. Estudas na UFSC, UDESC, CEFET...?
- Já andei por esses lugares.
- Massa. Eu sou do CTC. Faço Sistemas de Informação na UFSC.
- Fascinante.
- Galera de humanas é um pessoal com um jeito bem próprio, né?
- Não muito diferente dos outros, na verdade.
- É...
- Escuta, vamo chegar ali fora? Tava querendo fumar.
- Tu queres mesmo que eu te acompanhe?
- Claro! Bora lá.
- Não. Tu não entendesse a minha pergunta...
- Hum.
- Tu realmente quer que eu te acompanhe?
- Quero, pô! Tô te convidando.
- Não... tu ainda não entendeu.
- Hum...?
- Tu DESEJAS isso?
- Desejo, pô! É claro que eu desejo. Tô te falando...
- Certo.
Era sexta-feira. Noite de lua cheia.
Na programação, uma banda de hardcore oitentista, outra de crust power violence, outra de noise jazz e, por fim, uma de ego-core. A maioria dos frequentadores não ligava a mínima para o que estivesse tocando. A música era só um pretexto.
- Frio, né?
- Não sinto.
- É, dá pra sacar. Tu ficas altas gata com esse vestido aí, sabias?
- Hum.
- Tens namorado?
- Olha, vamos deixar algumas coisas bem claras aqui...
- Hum.
- Tas vendo aquela guria ali?
- Putz! Tu é lésbica!?
- Escuta, guri! Tás vendo aquela menina ali?
- Aquela gordinha de preto?
- Isso. Aquela sozinha bebendo vinho na calçada. Ali, na beira da Lagoa.
- Tá. O quê que tem ela?
- Eu tô aqui por causa dela.
- Não entendi... ela tá contigo? É tua amiga? Namorada? Tua irmã? Não saquei.
- Eu existo, aqui, por causa dela.
- Como é que é?
- Eu existo aqui por causa dela.
- Hahahaha.
- …
- Tu fumou?
- …
- Tá de cara?
- …
- Escuta. Te achei bem linda, na real.
- Eu sei.
- Então, sei lá...
- Não encosta em mim.
- O que foi, pô!?
- Não encosta em mim.
- Não tás afim?
- Eu sou uma bruxa.
- ...?
- Ouvisse?
- ...?
- Eu sou uma bruxa.
- Sério? Não parece...
- Eu vou te dizer só mais uma vez: eu sou uma bruxa. E eu te trouxe aqui pra te convencer disso.
- Nossa! mas eu já tô superconvencido, na real.
- Já te disse pra não encostar em mim, porra! E se eu precisar repetir, tu vai se arrepender.
- …
- Muito.
- Beleza, beleza. Saquei.
- Escuta: bruxas existem. E eu sou uma delas.
- Tá. E porque tu tás me dizendo isso?
- Porque preciso que pessoas acreditem em nós.
- “Nós” quem, guria? Tás maluca? Deixa eu voltar lá pra dentro, deixa. Falou!
- Não, gurizão. Não entendesse. Tu vai ficar aqui comigo. A gente vai terminar esse papo agora.
- Sai fora, sai!
- Tu não disse que desejava isso?
- Sua doida.
- Tu vais ficar.
- Ah, vou! E se eu não quiser? E se eu te deixar aqui falando sozinha? Sua errada. Sua demente.
- Aí, então, o teu pai morre de câncer no intestino.
- O que tu disse?
- Eu disse que se tu voltar lá pra dentro daquela porra de bar, então o Seu Gilson, teu pai, vai acordar amanhã no Hospital Regional tão cheio de dor que a única coisa que ele vai conseguir fazer vai ser urrar e pedir pra morrer até se cagar todo. Toda a cama. Todo o lençol. Todo o cobertor. Todo o colchão. Tudo. Tu já visse alguém literalmente se cagando de dor, André? É mais do que feio ou nojento. É indigno.
- SUA VACA!!! SUA PUTA DO CARALHO!!! VAI TOMÁ NO CU, SUA CADELA!!!
- É melhor baixar a voz.
- VAI SE FUDER! Como é que tu sabe do meu pai? Quem foi que te disse isso, sua doida do caralho!?
- Eu sei, André.
- E como é que tu sabe o meu nome, sua vaca!?
- Eu sei.
- Sua doente!
- Conquistei a tua atenção, não foi?
- Sua doente!
- Agora senta aqui comigo. Vamo conversar a sério.
- …
- Senta André! Te garanto que aqui, na calçada, comigo, tu vai se divertir bem mais do que lá dentro com aqueles noias dos teus amigos.
- Sua psicopata do caralho. Quem és tu, quem?
- Senta aí e eu te conto.
Eram quase 3h da manhã. O Under continuava aberto. A última banda começava a ensaiar os primeiros acordes. Grupos de jovens amontoavam-se em frente ao bar, invadiam a rua, tomavam conta da calçada à beira da lagoa. No meio-fio, garrafas vazias, ou quase vazias, de vinho barato, refrigerante, vodca e cerveja.
As madrugadas de julho costumam ser muito frias em Florianópolis.
- Aí, gurizão! É isso aí. Tá confortável?
- Melhor tu falar logo...
- Eu gosto assim. Quando os caras ficam nesse nível de interesse.
- Vai tomar no cu.
- Mal-educado. Olha, tá bom, vamo começar vamo. Tu lembra da menina ali? A moça de preto?
- O que é que tem ela? Foi ela que te contou do pai? Quem é aquela gorda?
- Não. Ela nem sabe que estamos aqui. Muito menos imagina quem é o teu pai.
- Então o que ela tem a ver?
- Eu te disse que eu tô aqui por causa dela.
- Cara, que viagem...
- Eu te disse que eu tô aqui por causa dela, lembra? E eu te disse que sou uma bruxa. Uma bruxa de verdade.
- Que viagem... Puta que pariu!
- Olha, André, deixa eu te contar uma história que aconteceu comigo há muito tempo atrás. Aqui perto, inclusive.
- …
- Antes de existir esse bar. Antes de existir esses bares. Antes de existir o próprio calçamento dessa rua, tinha um riacho aqui pertinho. Um riacho e uma casinha de pau-a-pique.
- Hum.
- Nessa casa morava uma família. O pai era tanoeiro. Tu sabes o que é um tanoeiro, não sabe? Não, não sabe. Um tanoeiro, André, é um homem que fabrica toneis, barris. Esse era um tipo de produto muito utilizado por aqui naquela época e esse cara tinha uma boa clientela. A mulher dele, por sua vez, era lavadeira e todos os dias vinha até o tal do riacho pra trabalhar. Ela lavava a roupa das famílias boas aqui das imediações. Sabe, André, essa mulher conhecia os segredos de todo mundo. E isso só por ler as manchas das roupas que mandavam pra ela. Nódoas fresquinhas de sangue, porra, merda, todo tipo de marca que um lençol, uma camisola, uma ceroula, um corpete podem deixar...
- Tu é doida, guria.
- Afe! Que repetitivo tu és! Fica quietinho, fica e me deixa continuar...
- …
- Tinha uma garota na família. Uma menina de 14 anos. Filha única. A mãe e o pai queriam ver a coitada casada. Rápido. Se possível com algum pescador ou roceiro conhecido. Qualquer um, na verdade. Mas com decência e o mais rápido possível. É que pra eles tinha que ser assim, entende? Mulher tinha que casar. E além disso tinha a coisa da austeridade. Quando a menina saísse fora, aí então era uma boca a menos pra dar de comida. Um alívio pra todo mundo.
- Tá. E daí?
- E dai que um dia essa guria veio até o riacho sozinha. A mãe dela tava doente. Tava com disenteria. Não conseguia sair da latrina naquela manhã. A menina, então, veio sozinha até o riacho fazer todo o serviço da mãe.
- …
- Ela trabalhou pra caralho naquela manhã. Lavou uma porrada de pano sujo e fedido. Um monte mesmo. Tanto que, ao meio-dia, ela se sentou em baixo de uma árvore para comer e descansar. Ela comeu pão com peixe frito, chupou uma laranja e bebeu um pouco de água do riacho. Quando se deu por satisfeita, ela deitou. Meia hora depois pegou no sono.
- Não tô entendendo, porra nenhuma.
- Então, ela dormiu sossegada durante algumas horas. Tava uma tarde bonita. Aí, a certa altura, ela acordou com alguma coisa em cima dela. Era um negócio grande, imundo e fedorento. Como uma trouxa de roupa suja. E essa coisa, André, esmagava a menina, sufocava a menina e se metia por entre as pernas da menina. A coitada tentava gritar, mas não conseguia. Ela se debatia, mas a coisa era muito forte. Forte, peluda e com bafo podre. Enfim, pra encurtar a conversa: o marinheiro gordo fodeu forte a menina. Fodeu e gozou dentro dela. Desnecessário dizer que a guria era virgem e que aquela foi a experiência mais aterrorizante, humilhante e dolorosa da vida dela, né?
- É sério essa história?
- É claro que sim! Mas cala essa boquinha que ainda tem mais.
- Hum.
- O marinheiro deixou a moça jogada no mato e foi embora. Nunca mais apareceu na freguesia. A menina chorou muito, se lavou e voltou pra casa só depois de escurecer. Quando ela chegou, encontrou a mãe com um terço na mão, rezando pra Deus trazer a garota sã e salva. Quando a mulher viu o estado da filha entendeu imediatamente o que é que tinha acontecido. O pai, que a essa altura já andava pelos matos procurando a filha, quando viu a garota também entendeu. Não adiantou muito a mãe gritar e pedir pro marido que tivesse calma. Ele bateu tanto na moça que só parou quando começou a tirar sangue das costas, braços e pernas da menina. Foi punk aquele dia.
- Puta que pariu.
- É. Era uma época difícil aquela, né? Bom, mas o importante é que chegado a esse ponto as coisas só pioraram. Naquele mês a moça não menstruou e, tempos depois, já tinha uma criança na família. Um lindo bebezinho. Grande. Gorducho. Sadio. Ele não foi batizado. A moça continuou morando com os país, mas agora não podia dirigir mais a palavra ao velho. Com a mãe a coisa era um pouco menos escrota. A mulher pelo menos falava com a filha. Tá bom que, por dentro a velha desprezava a guria e, no máximo, tolerava a presença do neto, mas ao menos ela se esforçava. Isso era a situação em casa. Na rua era bem pior. Pela freguesia, pelas costas da moça, o pessoal chamava ela de “rapariga”, “perdida”, “puta”... Galera dizia até que ela dava pra leproso e pra escravo. Não tinha coisa pior naquela época que ser leproso ou escravo, André.
- …
- Mas, assim, apesar de tudo a menina tentava gostar da criança. Ela queria amar o filho. Queria mesmo.
- Hum... E aí?
- Aí é que ela não conseguia. O moleque tinha sido resultado de um estupro, porra! Dá pra entender, né?
- Hum.
- Mas o foda mesmo é que toda noite ela tinha uns sonhos parecidos. Ela tava nua numa igreja, no meio de uma missa, e, nessa missa, todos olhavam pra ela e riam, gritavam e chingavam. No sonho, ela tava com o filho no colo. De repente ela olhava pro menino e não via mais um bebê, mas uma trouxa de roupa suja. Ela ficava aliviada ao ver que a criança tinha sumido. De repente, tudo mudava ao redor. Agora ela tava no riacho, numa tarde bonita, sentada, tranquila olhando a correnteza. Nessa hora ela sentia uma mão tocando levemente o ombro dela. Era uma mão amiga. Um gesto de conforto. Aí, então, ela olhava pra trás e via um homem bonito. De barba longa e cabelo longo. Tipo Jesus. Só que definitivamente não era Jesus. Ele, então, dizia calmamente pra ela: “tu podes”. Nessa hora a moça sempre acordava assustada, suada e ofegante. E era assim quase toda a noite.
- ...
- Isso durou até o fim.
- Até o fim do quê?
- Até o fim dessa bosta toda. Até o dia em que a menina levou o seu bebezinho até o rio e afogou a criança.
- Como é que é?
- Ela nunca admitiu o que tinha feito. Ao invés disso, criou uma história que passou a repetir pra si mesma todos os minutos, todas as horas, todos os dias, todos os anos, até morrer. O que durou um bom tempo, felizmente. Digo, felizmente pra mim, claro. Pra ela foi péssimo.
- E que história foi essa? Que história ela inventou?
- Então, essa é a parte boa: ela inventou uma história aonde uma mulher, muito velha e feia, vinha voando pelo céu, entrava por um buraco na parede da casa, invadia o quarto aonde a moça dormia com o neném, roubava a criança e jogava o guri no rio.
- Que pira.
- Eu acho inventivo.
- E quem era essa velha?
- Bobo! Sou eu.
- Como é que é?
- Sim! Incrível né? Desde então eu existo! E é graças a gente como essa pobre coitada que eu sigo existindo ao longo do tempo. Naquele caso, eu fui a bruxa que roubava e matava bebês. Mas também, conforme a situação, eu posso ser a bruxa que destrói as colheitas. Ou a bruxa que adoece o gado. Também sou a bruxa que deixa os homens brochas. Ou que faz o útero das mulheres secar. Enfim, sou eu. Era eu. Sempre eu. E quando não sou eu em particular, sempre é alguma das minhas irmãs.
- …
- É que iguais a mim existem outras, sabe? Muitas outras. Ou pelo menos existiam.
- Tu é completamente doida, guria. Totalmente fora da casinha.
- Certo. Ceticismo é uma coisa que eu já tô acostumada a lidar ultimamente. De todo modo, sabe a garota de preto?
- Hum?
- Ela quer ser uma de nós, coitada. Quer ser uma bruxa. Na real, ela é só uma adolescente assustada, tentando descobrir o seu lugar no mundo e se defender do jeito que pode. Só que, aí é que tá: o fato de ela acreditar na possibilidade de um dia poder vir a ser uma bruxa de verdade lhe dá conforto. Dá a ela a sensação de poder. Espanta os demoninhos dela. Então ela crê. Crê com todas as forças na existência real, concreta, de seres como eu. Do mesmo modo que a minha amiga lavadeirinha acreditava em mim, pra poder manter alguma sanidade, essa garotinha aí também tá completamente convencida disso. A única diferença é que, antigamente, gente assim fazia esconjuro, reza...
- Reza?
- Sim. Tinha uma que eu achava massa, até... Mas como era mesmo...?
- Que reza?
- Ah, lembrei! Era assim, ó:
Pela cruz de São Saimão
Que te benzo com a vela benta
na sexta-feira da paixão
Treze raios tem o sol,
treze raios tem a lua
Salta demônio para o inferno,
pois esta alma não é tua.
Tosca Marosca, rabo de rosca
Aguilhão nos teus pés
e relho na tua bunda.
Por baixo do telhado,
São Pedro, São Paulo e São Fontista
Por cima do telhado, São João Batista
Bruxa tatarabruxa,
tu não me entres nesta casa,
nem nesta comarca toda.
Por todos os santos, dos santos,
Amém!
- Que porra é essa, guria?
- Massa, né? Mas hoje, fora alguns velhos, isso acabou. Atualmente o mais comum é que o pessoal vá até uma lojinha de camelô compre umas bugiganga, coloque num canto da sala e chame isso de “altar pagão”. Sabe como é, pentáculos, pires com sal, cristais, pedrinha colorida, pena de bicho morto, incenso, vela... essas porras. Acho tudo isso bem brega, na real, mas foda-se. O fato é que eu existo por causa de gente que faz esse tipo de coisa. Gente como aquela moça ali. Frágil e assustada. E no dia que pessoas como ela deixarem de existir ou acreditar em mim, no dia que elas deixarem de acender os seus incensozinhos fedidos, então eu enfraqueço e desapareço. Sumo no éter, como se dizia. Cara, tu não imaginas o quanto é frio e solitário no Esquecimento. Ou pelo menos não por enquanto, já que um dia tu também vai acabar lá. O Nada, André, é tranquilo perto do Esquecimento. Muito mais tranquilo. Seria ótimo poder voltar pro Nada, na real.
- Guria, ou tu é muito doida ou tá completamente sequelada. Totalmente.
- Bastante informação, né? É que às vezes eu falo demais. Sou muito ansiosa, acho.
- Doida. Doente. Maluca do caralho.
- Tá bom, André. Tá bom. Tô vendo que contigo o negócio tem que ser mais hard.
- Tô vazando.
- Tá bem. Vai lá.
- Fui.
- André! Só mais uma coisa...
- Hum?
- Amanhã, quando tu fores visitar o teu pai na UTI...
- O que? O quê que tem o meu pai?
- Lembra de mim, tá bom?
- …?
- Só lembra.
O show havia acabado. O bar já estava fechando. Os grupos se dispersavam pela avenida.
A moça de preto continuava sozinha, sentada na calçada, bebendo o que restava de uma garrafa de vinho tinto seco. Ela não queria voltar para casa. No céu, a lua cheia, branca, profundamente branca, sob um céu de abismo se refletia na lagoa. A jovem olhava para a Lua e para as águas. O silêncio e o ruido leve das ondas a acalmavam.
Não era a toa que existiam tantas histórias sobre aquele lugar. Havia alguma coisa de fantástico ali.
Luiz Souza
CAMPECHE, 16 mar. 21.
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