sexta-feira, 16 de abril de 2021

MANECO VIEIRA

 


A Rodovia Aparício Cordeiro é uma estrada que leva do Campeche ao bairro da Tapera.

- Com licença, divindades, seres da natureza, posso entrar?

A Tapera é um bairro da periferia de Florianópolis.

-… Muito obrigado, Pachamama.

Uma das características da paisagem urbana da Ilha é o amálgama entre natureza e cidade, campo e asfalto.

- Deixai-me adentrar o vosso território, com todo o respeito...?

A Rodovia Aparício Cordeiro é margeada por pequenos campos de criação de cavalos...

- Ah, não!

e bois.

- Hum!?

- Otro doido!

- O quê...!?

- Que foi rapaigi?

- Caralho! Que merda é essa!?

- Olhó! Ficasse branco que é uma cera!

- Tu falas?

- Não, não falo!

- Tu és um boi falante!? É pegadinha? Que palhaçada é essa?

- Não adianta procurar ninguém não, ô seu tanso. Sou eu mesmo que tô aqui, falando contigo.

- Tu és um boi mesmo?

- Sou um boitatá, não tás vendo?

- Um boitatá?

- É. Num conheces boitatá? Num és daqui, tu?

- Não. Sou de Porto.

- Ah! Outro gaúcho!

- O que é um boitatá?

- Num tem boitatá lá no Rio Grande do Sul, não? Os gaúcho num conhece boitatá?

- Eu... Eu... É.... eu não sei.

- Já visse um rastro de fogo no meio do mato à noite, por acaso? Que nem uma cobra de luz?

- Eu... na realidade... já.

- Então. Era um boitatá!

- Eu pensei que fosse fogo-fátuo. Quer dizer, na hora eu pensei que pudesse ser alguma coisa de outro planeta, tals... Mas, enfim... É que eu nunca pensei que pudesse ser um tipo de boi.

- Um tipo de boi não. Um boitatá.

- É. Isso. Um boitatá.

- Pois agora...

- Mas tu pareces um boi comum, na verdade. Um boi muito velho, mas comum. Tem certeza que isso não é uma pegadinha?

- Ah! vai te caga, guri! Pegadinha! Ahn, ahn... parece que não reza.

- ...

- Eu tô assim magro e acabado porque tô esquecido. Mas na hora que se lembrarem de mim, eu fico forte de novo. Gordo, bonito...

- Ninguém vem cuidar de ti?

- Pior! Ninguém lembra de mim!

- Hi, guys!

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno.

- Caralho, mano! Que é esso!?

É um fungo que dá barato.

- É um elemental, ô estepô! Nunca visse um elemental também?

Podemos destacar cinco habitats diferentes para os cogumelos Psilocybe cubensis:

- Um o quê!?

Jardins.

- Cuidado aí, ô seu songamonga! Vais pisar no bichinho.

Florestas.

- Ah, desculpa! Foi mal.

Banhados.

- Agora tu vais me dizer que nunca visses um elemental na vida? Não conheces saci, tu?

Depósitos de esterco.

- Nice to meet you, I'm Grimble Gromble. I came from England.

Pastagens.

- Ele é um gnomo?

Pastagens com bastante esterco fornecem um ambiente perfeito para os cogumelos coprófilos.

- Não tás vendo, ô esperto?

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno e coprófilo.

- Do you speak English? Hablas español?

Psilocybe cubensis são fungos que dão barato e que comem merda.

- Tem gnomo aqui?

Merda de vaca.

- Ô! é o que mais tem!

Merda de boi.

- ¿Estás bien, amigo? Tudo certinho com você? Are you okay?

- O que que ele tá fazendo aqui?

- Ah, o que tu acha? Tá morando aqui né, ô seu banzo!

- Aqui onde?

- Onde!? No pastinho! No meu pastinho!

- Tem um gnomo morando aqui no pasto?

- Um não! Tem uma penca! É força de gnomo que tem aqui no meu pasto agora!

- Báh, que locura!

- Poca da vergonha, isso sim! Uns mandrião, uns encostado...

- What is "mandrião"?

- Esse aí mesmo é o dia todo só com esse cachimbo na boca. É um fedor que ninguém aguenta.

- Tá, mas o que esses gnomos vieram fazer aqui?

- O quê!? O mesmo que tu! Pertubar!

- Do you smoke?

- Tá, mas eu não entendi ainda.

- És bem tolo tu. Vô te explica, então...

- Hum.

- É os de fora que traze. Antes isso aqui era uma paz, uma paz. Ai começou os turista. Primeiro era só na praia. Depois se espalhou. Gente de tudo que é lugar. Gaúcho, paulista, paranaense... Aí, acabo que de uns tempo, veio os estrangeiro. Primeiro, os argentino, os uruguaio, depois os outro. Esse aí veio com um gringo que mora ali no Campeche.

- Well, I'll be going now. Bye guys. Buenos dias a los dos. Tchau!

- Ó, lá vai ele fuçar na bosta de novo.

- É... e tu? Vives aqui há muito tempo?

- Eu!? Rapaigi, a minha família era dona desses campo tudo aqui. Antigamente, quando eu era rapazote, corria por esses mato que meu deus do céu. Coisa linda! Eu e os meus irmão. Direto, direto. Era eu, o Deco, o Zé da Maria, o Lino...

- Tinha mais!? Os outros também eram boitatás?

- Tudo boitatá legítimo! Tudo daqui. Nascido e criado na Tapera.

- E onde eles estão agora?

- Ah! Agora tá quase tudo sumido. O Deco eu não vejo desde a construção da Ponte. O Zé da Maria eu perdi de vista. O Lino, coitado, desapareceu depois que o avô do rapazinho que cuidava aqui do pasto morreu.

- Bois tem nome?

- Os boitatá tem.

- Tens nome também?

- Não, não tenho!

- Não tens?

- Claro, ô boca-mole!

- Qual?

- Maneco Viera, ao seu dispôr. Filho da Dona Dica e do Seu Zinho do Engenho.

- …

- Que quê foi? Perdesse a língua? Ficasse abobado?

Segundo a Wikipédia...

- É que... eu não sei... será que eu tô bem? É que eu...

as experiências com cubensis costumam ser extremamente construtivas para o usuário que as experimenta, porém...

- Ô seu coisa ruim,tavas mexendo na bosta também num tavas?

...porém,...

- É... Eu...

...porém,...

- Na verdade eu...

...porém,...

... eu tava sim.

...porém...

- Ah, pronto!

não são raros os casos de ''bad-trips''.

- É... Eu acho que preciso dar um tempo.

E em altas dosagens, o usuário tende a perder o contato com o mundo exterior.

- Claro que precisas!

Ele acaba chapando demais.

- Tá. Falou.Vou lá comer um chocolate...

- Vai, vai! Vai-te embora!


Luiz Souza

CAMPECHE, 19 abr. 2021.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

O MENINO LOIRO

 

Wladyslaw Moes (1900-1986). 




 Toda quarta-feira a noite, depois do expediente, Dr. Rafael Antunes Barbosa, 32 anos, sai para transar com outros caras.

Rafael é casado com a mesma mulher desde o final da faculdade. Mas isso já não o incomoda mais.

Hoje é quarta-feira.

É quase seis horas.

- Cris, por favor, me diz que acabou.

- Acabou, Rafa. Hoje não tem mais ninguém agendado.

-Ai, graças a Deus!

O Dr. Rafael Barbosa é psiquiatra psicanalista e tem um consultório pelas imediações da Avenida Beira-Mar Norte, no centro de Florianópolis. Ele costuma atender até as cinco e meia. Depois desse horário, como faz quatro dias por semana, o homem desce o edifício comercial aonde trabalha, pega o seu carro, busca as duas filhas pequenas na escola e se dirige diretamente para sua casa, na Agronômica.

Rafael faz isso mecânica e religiosamente.

Quatro dias por semana.

Mas hoje é quarta.

Oficialmente, quarta-feira é dia de vôlei com os amigos.

Nada de escolinha. Nada de pizza. Nada de série antes de dormir. Nada disso.

Hoje é quarta-feira.

Dia de pegação.

Pegação forte.

- Desculpa, senhor. Os banheiros do shopping agora tão todos interditados. Desculpa, tá? Faz favor...

Ás quartas, Rafael costuma frequentar os banheiros do Beira-Mar Shopping.

O lugar lhe parece excelente: público jovem, saudável, de nível e boa aparência. As vezes Rafael precisa pagar, mas quase sempre o que acontece nas cabines dos mictórios é só diversão mesmo.

- Não posso usar o banheiro?

- Não, nenhum.

Hoje, infelizmente, as coisas não estão indo conforme o planejado.

Parece que houve algum problema nos encanamentos do edifício. A auxiliar de serviços gerais não sabe informar o que há.

Não importa. O que importa é que Rafa não poderá usar nenhum dos banheiros do Shopping.

O médico fica puto com a faxineira e sai.

- Vaca. Vou ter que ir lá pro parque.

O Parque da Luz é uma área verde de lazer situada bem na zona central da cidade, nos altos da rua Felipe Schmidt, na cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz. O espaço, durante o dia, é frequentado por crianças, velhos, ciclistas e desempregados. Já a noite é visitado por pessoas em busca de sexo fácil e drogas baratas.

Até aí, Rafa está bem informado.

O que ele desconhece é o passado do lugar.

A área onde hoje fica o Parque da Luz foi, até a construção da Ponte, o cemitério público de Florianópolis. Praticamente todos os que morriam no núcleo urbano central da cidade eram enterrados lá. Isso aconteceu de 1841 até a década de 1920. Quase setenta anos.

Setenta anos.

Centenas de covas.

Milhares de corpos.

- Olá.

Rafael não acredita na sorte que está tendo. O menino deve ter uns 17 ou 18 anos. No máximo.

- Oi. Curte o quê?

Rafa perguntou por etiqueta. Ele toparia qualquer coisa.

- O que você preferir.

O menino tem cara de anjo. Loiro, olhos azuis, cabelos longos e ondulados.

- Chupa.

A boca do rapaz é quente e macia como uma boceta. Ele parece ansioso. Sorve rápido o pau de Rafael. Muito rápido, como se não visse a hora de acabar.

- Isso... isso... putinho... chupa viado.

- Umpf... Umpf...

- Humm...

- Umpf... Umpf... Flap-flap, flap-flap, flap-flap... Umpf... Umpf...

O médico ejaculou abundantemente.

O garoto não tem problema em engolir esperma.

Rafael está satisfeito.

Já é noite.

É preciso voltar para casa.

Dr. Rafael fecha a braguilha e procura a carteira no bolso traseiro da sua calça jeans.


***


- Eu não quero dinheiro.

- Ai, desculpa... Pensei que você tava trabalhando.

- Eu não quero o teu dinheiro.

O menino tem olhos tristes.

- Tá bom.

- Não preciso de dinheiro.

- Tá, entendi.

- Mas eu quero outra coisa.

- Humm?

- Eu preciso que tu me ajudes.

- Ajuda? Claro, claro, podendo eu ajudo. Não é dinheiro mesmo que tu tás precisando? Olha, eu acho que eu tenho cinco reais ali no porta-luvas e...

- Eu já disse que não preciso de dinheiro.

- Certo. O que é, então?

- Eu preciso é que tu digas aos outros, os de fora do parque, que eu estou aqui. Que eu ainda estou aqui.

- Oi? Desculpa, eu não sei se entendi.

- Eu preciso que tu digas aos vivos que ainda existe um túmulo aqui.

- ...?

- E que esse túmulo é meu.

- ...? Túmulo? Seu túmulo?

- Eu quero que digas a eles que eu ainda estou aqui embaixo desta terra. Quero que digas a eles que eu não posso continuar aqui.

Rafael dá como certa a esquizofrenia do rapaz.

Ele não parece usuário de crack. Tem aspecto bom demais para isso. O garoto está doente. Um surto. Sim, um surto, não há dúvida. O garoto tem algum transtorno e está em surto. Talvez esquizofrenia.

Já é noite alta.

Rafael está sozinho.

No meio do nada.

Sem ninguém para pedir ajuda.

Surtos esquizofrênicos podem ser muito violentos.

- Claro. Claro que eu te ajudo. Ajudo sim. Olha só, senta um pouquinho aqui que eu vou ali no carro pegar o meu...

- VIADINHO!!!

- Ah!

- Seu viadinho de merda!

- …!?

- Viadinho!

- Calma...

- Invertido!

- Calma, por favor...

- Desgraçado! Uranista! Sifilitico nojento! Pederasta!

- Tudo bem, rapaz. Tá tudo bem, eu sou amigo. Não disse que ajudava? Tudo bem.

- Sodomita!... Maricas!... Efeminado...

- … calma...

- …

- …

O garoto está chorando. Rafael começa a sentir pena dele. Pena de verdade. O menino tem um rosto de porcelana. Branco e delicado.

- Desculpe, senhor.

- Tudo certo. Vai dar tudo certo. Calma. Respira...

- Desculpe.

- Esquece.

- Eu era herdeiro de uma das famílias mais importantes da Província.

- Como?

- Eu nasci num solar próximo à Igreja. Meu pai não era brasileiro. Era suíço. Minha mãe, italiana. Imigraram os dois da Europa apenas alguns anos antes do meu nascimento. Venho de uma família de bacharéis. Meu avô foi bacharel. Meu pai era bacharel. Eu estava destinado ao Direito.

- Tá bom, tá bom... Olha só, tu precisa de ajuda profissional, entendeu?

- Eu pertencia a uma das famílias mais respeitadas daqui. Papai vivia aos braços com todos os políticos. Mamãe era assídua nas soirées das esposas dos figurões. Todos os poetas faziam versinhos à minha irmã mais nova. Todos.

- Tá. Tudo bem, tudo bem... Olha só, tu tomas alguma medicação controlada?

- Eu estava prestes a partir para São Paulo...

- Thorazine, Haldol... alguma coisa assim? Sabes do que eu tô falando?

- Os planos de papai eram que eu terminasse os preparatórios até o fim do ano. Em março começariam as minhas aulas. Eu defenderia a minha tese na Faculdade de Direito. Eu conheceria os melhores rapazes da minha geração. Eu, um dia, chegaria à presidente de província. Eu chegaria à presidência. Talvez além... Senador! Eu seria Senador do Império. Talvez, Conselheiro.

- …

- Eu poderia ter sido coronel.

- …

- Lutado numa grande batalha. Ganho condecorações. Morrido cheio de glórias, como os heróis do Paraguay.

- Humm.

- Mas que triste foi o meu fim.

- Tá. É que eu realmente preciso ir...

- Tísica. Foi a maldita tísica o que me levou.

- É que...

- Foi linda a minha missa de sétimo dia! Era domingo. Quanta gente veio até aqui, meu deus! Todos vieram.

- ...

- No começo, todas as segundas mamãe me trazia flores. Depois foi minha irmã. Até a velhice ela ainda vinha me ver.

- Tu moras aonde? Eu posso chamar um uber e...

- Quantas vezes eu a vi aí. Bem aí. Sempre sozinha. Sempre de luto. Nunca se casou. Sempre dedicada à memória da família. Sempre, sempre. Pobrezinha... Nunca me esqueceu.

- Olha...

- Escute, havia quatro cavalos no meu funeral. Quatro cavalos árabes conduzindo o carro fúnebre no dia do meu enterro! Quatro! Eu tive um enterro de príncipe! Poderia ter tido uma vida de rei. Rei. Que orgulho eu teria dado ao papai...

- Tu precisas de ajuda...

- Olha, toma o meu cartão... Me liga amanhã.

- Então um dia a minha irmã deixou de vir. Ela sempre vinha. Eu soube de imediato o que havia acontecido. Ela já estava muito velha. Desesperei. Não haviam outros parentes. Minha irmã era a última da família. Era a última criatura do universo a lembrar-se de mim. Minha irmãzinha, coitada. Tenho saudades dela.

- Uhum. Certo. Deixa eu te dizer, então: eu sou médico. Sou psiquiatra e...

- Então, nesse dia, comecei a sentir-me como que esvanecendo. As palavras, as ideias, as imagens todas me fugiam do espírito. Os nomes soltavam-se dos seres. A realidade começou a esboroar. Minhas memórias foram sumindo...

- Uhum, uhum. Eu te entendo.

- Mas ainda havia a lápide.

- Lápide? Tá...

- A lápide com o meu nome.

- Olha, eu já te dei o meu cartão, guarda ele bem direitinho...

- Eu entendi tudo. Eu compreendi que a lápide era o que me mantinha aqui. A minha lápide. A inscrição em mármore do meu nome e sobrenome. A marcação dos meus ossos. Eu ainda existia porque algo mantinha a minha memória. Eu entendi tudo.

- Sei, sei. Então, guarda bem esse cartãozinho...

- Mas numa manhã alguns negros encardidos chegaram empunhando pás e picaretas.

- Você pode me ligar assim que for preciso, tá bom?

- Revolveram a terra. Violaram túmulos. Perturbaram os cadáveres...

- O meu nome é Rafael. Dr. Rafael...

- Levaram muitos daqui. Mas principalmente os mortos de maior estirpe. Muitos parentes meus partiram daqui juntos. Nunca mais os vi.

- Você pode falar com a minha secretária, a Cris...

- Mas haviam muitos como eu aqui. Muitos. Enterrados há muito tempo. Porém a maioria não era composta por gente de bom nível, compreende?

- Certo...

- Os operários não levaram os pobres-diabos. Deixaram-nos quase todos aqui. Muitos, muitos deles.

- ...

- Tiveram apenas suas lápides derrubadas. Nunca ninguém jamais veio reclamar os seus ossos.

- Que coisa. Então, eu tava falando da Cris. Ela é um amor...

- Não sei qual foi o erro cometido pelos administradores. Mas, a minha lápide foi esquecida também. E digo isso com toda a serenidade porque sei que o que houve foi um equívoco. Só pode ter sido um equívoco. Foi um erro da administração do cemitério. Um erro terrível. Horroroso.

- ...

- Eles me esqueceram, compreende? Meus ossos ainda estão aqui. Bem aqui. Compreendes, o que digo? Aqui. Meus ossos ainda estão aqui. Compreendes a gravidade disso?

- Claro que compreendo. Tu podes ligar a partir das nove da manhã. Fala com a Cris...

- Meus ossos ainda estão aqui, ouviste!? AQUI! Misturados ao pó da ralé! Aos crânios das prostitutas! Às vértebras dos bêbados! Aos fêmures dos estivadores! Ás tíbias das lavadeiras! Ás falanges dos escravos! Escravos! Aqui!

- Certo, certo... respira, por favor.

- Eu não podia desaparecer e deixar os meus restos junto ao entulho.

- Tu ligas amanhã, nós marcamos um horário e...

- Foi por isso que te dei o privilégio dos meus afagos, entendeste?

- …!?

- É por isso que eu sempre os ofereço aos passantes. Todos. Todos eles. Todos os que cruzam pelo meu túmulo. Homens, mulheres, velhos, velhas, meninos, meninas... até mesmo aos escravos.

- Oi?

- Aprendi o truque observando as rameiras. Sempre as mesmas, trazendo sempre os mesmos tipos para cá. Eles sempre voltavam para elas. Sempre lembravam delas.

- ...?

- Mas elas... Elas faziam... fazem, por tostões.

- Amigo, por favor, me escuta só um pouco.

- Tostões!

- Calma, por favor...

- Eu não faço por tostões...

- Calma...

- Não, não, não...

- Calma...

- Não por tostões. Eu não preciso de tostões. Eu tenho posses. Minha família tem um solar perto da Igreja.

- Moço, é melhor tu me dizer o teu nome também. Talvez eu possa...

- Um solar lindo.

- Escuta, eu preciso saber o teu nome.

- Um jardim enorme.

- Olha pra mim, eu quero o teu nome, por favor.

- Pardais...

- Garoto, olha pra mim. O teu nome. Qual é o teu nome?

- Gaturamos...

- Ei! Me diz o teu nome!

- Sabiás...

- Qual o teu nome!?

- Meu nome...?

- Isso. Teu nome.

- Meu nome...?

- Sim, qual o teu nome?

- Eu...

- …

- …

- Eu não...

- ...

- Eu não me lembro mais.

***


Quando Rafael chegou em casa era quase dez da noite. Não beijou a mulher como de costume. Foi direto para a ducha.

- E aí, môr. Como é que foi o vôlei hoje?

- Foi bom.

- Foi?

- Foi. Foi diferente.

Não jantou. Não foi ver as meninas no quarto e nem perguntou como havia sido o dia na escolinha.

Deitou.

Ao dar o beijo de boa noite na mulher, Rafael notou que Vera havia vestido a sua melhor calcinha.

Imediatamente ele fechou os olhos e buscou imagens.

Cenas diversas. Fragmentos. Imagens desconexas. Algumas completamente fantasiosas. Havia partes de corpos humanos, fotogramas de gestos, lembranças de sons. Um olhar, um par de nádegas, uma barriga, um palavrão sussurrado ao pé do ouvido. Geralmente essas buscas demoravam alguns minutos e eram pouco nítidas, mas hoje não. Hoje havia algo fresco e vivo na sua cabeça.

Rafael pensou no menino do parque.

Lembrou dos seus cabelos longos, ondulados e revoltos de poeta romântico.

- Humm...

Do rosto delicado.

- Humm... Humm...

A boca.

- Humm... Humm... Isso...

Os lábios vermelhos. Protuberantes.

- Delícia.

Uns lábios macios e quentes.

- Isso, vai...

Como uma boceta.

- Fode!

É quase meia-noite.

Abraçado à sua esposa, a arquiteta Vera Lúcia Antunes Barbosa, o Dr. Rafael Barbosa dorme pensando no menino loiro do Parque da Luz.

Amanhã é quinta-feira.

Faltam seis dias para quarta.


Luiz Souza

CAMPECHE, 25 mar. 2021.




terça-feira, 6 de abril de 2021

O BOI-FANTASMA

 

- Paulo Andrés de Matos Villalva (Amaweks). O Boi Fantasma, 2014. Disponível em: 
https://diarioartografico.blogspot.com/2014/04/apropriacao.html?fbclid=IwAR1migQtQXFwSLrOh9HNJMtW6FYMeNjIzv42uA96QYF-Jh5frn-FW0Q3e-Q
 


"Oioioiô, com você eu me abro.

Oioioiô, como tudo é tão triste!

Pra que foram inventar o diabo?

Agora ele pensa que existe."

- Zumbi do Mato. Meu filho diferente, 2005.


Era sábado. Estava calor e ele decidiu tentar dormir um pouco. Deu mais um pega e deitou na areia.

Fechou os olhos. A luz do sol entrou pelas suas pálpebras apesar das lentes dos óculos escuros. Ao longe, o som das ondas, um vendedor ambulante e banhistas. O vento era uma brisa suave.

Viu formas em meio à vermelhidão clara do seu interior. Pontos brilhantes e escuros que passavam por dentro dos seus globos oculares. Algumas dessas figuras lembravam minúsculas moscas voando de um lado para o outro. Outras, parecendo pequenos bastonetes lembravam criaturas microscópicas de gravuras de velhos livros didáticos.

As coisinhas passavam apressadas diante dos seus olhos. Algumas movimentavam-se de forma confusa, mas não pareciam agir aleatoriamente. Elas pareciam conscientes.

Um dos seres parou e permaneceu flutuando em meio à vermelhidão e ao caos.

Uma espécie água-viva.

Fluorescente.

Com cérebro.

E olhos.

Ele a reconheceu.

Guarde esse entendimento: o Mundo e Extramundos.

Ela não falava. Apenas fazia-se compreender.

Vocês habitam o primeiro, nós, os outros.

Foi um amigo artista plástico que lhe apresentou pela primeira vez aquela imagem.

Nesses lugares que existem para além do que os seres humanos definem como espaço, tempo, matéria e energia, se constituem forças autônomas e que se nutrem de tudo aquilo que nasce e emana das suas vidas interiores e corpóreas: medos, desejos, ódios, amores, saudades, memórias... Essas forças somos nós.

- Cara, de onde tu tirou essa pintura?

Somos os produtos das suas experiências no seu plano de realidade.

- Humm... Acho que eu andava com a ideia de criar uma espécie de bestiário da Ilha. Como os dos livros medievais, ou dos jogos de RPG, saca? Só que com elementos daqui.

Uma vez formadas, passamos a agir como qualquer outro ser vivente. Buscamos continuar existindo. Queremos continuar sendo.

- Interessante essa ideia.

Cada lembrança, fantasia, sonho tem sua origem nas suas pequenas e grandes experiências, pessoais e coletivas, e se mantém para além delas. Algumas de nós desaparecem cedo. Quase natimortas. Abortos do pensamento humano.

- Pois é. Acho que pensei na controvérsia sobre origem do boi de mamão, sabe? Tu já deve ter ouvido alguma coisa nesse sentido: tem gente que diz que a origem do personagem é uma, outros dizem que é outra. Rola todo um papo sobre a crença cristã de morte e ressurreição, o lance sincrético dos ídolos de fertilidade...

Outras duram um pouco mais. Às vezes, um dia, dois, alguns anos, uma vida inteira. Todas, no entanto, findam assim que os seus suportes físicos deixam de existir como carne. Nossos irmãos morrem com vocês.

- Sim.

Mas existem outros bem mais longevos. São esses os mais poderosos da nossa espécie.

- Enfim, só sei que, um dia, resolvi criar a minha própria história de origem. Uma história sobre o primeiro “avistamento” de uma criatura dessas.

São as formas de pensamento mantidas ao longo de séculos e milênios com a força de milhares, milhões, bilhões de experiências vitais acumuladas ao longo do tempo. A fé de cada crente. O ódio de cada ofendido. O ressentimento de cada humilhado.

- Hum.

- Nós, como vocês, somos mortais. Nós, como vocês, sabemos da nossa condição. Nós, como vocês, não queremos morrer. Seres de substâncias extracorpóreas, não estão submetidos às leis do Mundo, porém, também não são superiores à natureza dos Extramundos. O Esquecimento é o nosso destino - um espaço ermo, distante, de dificílimo acesso e fronteiriço com o Nada.

- Aí, então, eu peguei esse negócio do folclore e joguei lá pra época do Império.

A nossa mortalidade e corruptibilidade nos tornam tão temporais quanto vocês mesmos.

- Imperio não! Me confundi. Colônia. Eu peguei esse negócio do folclore e joguei lá pra época da colônia. Antes da ocupação açoriana ainda. Quando isso aqui era só uma ilha guarnecida.

Não somos deuses, nem demônios, apesar de muitas vezes vocês assim nos denominarem.

- Massa.

Somos, pelo contrário, criaturas dependentes e submetidas aos caprichos da matéria em movimento e do aparente acaso da história.

- Uma ilha do litoral sul do Brasil do início do século XVIII. Só com alguns soldados esquecidos nos fortes. Um punhado de soldados isolados no breu da Ilha.

Matéria e processo histórico que, se possui alguma ordenação superior, nos escapa tanto quanto a vocês.

- Uhum.

Nós, os pensamentos somos tão reais quanto qualquer elemento classificado em suas atuais tabelas periódicas e não vivemos isolados de vocês.

- Um cenário propício pra criaturas mágicas.

Nascemos no seu plano. Dentro de vocês. Vivemos num espaço psíquico de transição entre o Ser e o Nada. Chamamos esse espaço de Matárius. Outras denominações possíveis e que vocês usariam poderiam ser mente, espírito, pensamento, imaginação, fantasia, inconsciente. Mas não importam os nomes. Nem as definições.

- Avistamentos...

As criaturas de Matárius não somos inertes nem passivas.

- Sim. Acho que o meu processo de criação da pintura passou por essa espécie de mitologia que eu inventei.

Nós atuamos nos nossos mundos...

- Tipo, um universo.

.. e no seu.

- Um mundo que dá a base pra imagem.

Nos insinuamos nos seus sonos, nos seus devaneios, nas suas razões, nas suas loucuras. Nosso objetivo é o de conduzirmos vocês às nossas imagens.

- Saquei.

Às nossas evocações.

- Só que dai, pra compôr o desenho, eu misturei outras coisas. Elementos de RPG, videogames, coisas da cultura atual. Busquei referências contemporâneas que eram possíveis de serem conectadas com elementos da paisagem, natureza local.

Em todo quadro que se pinta, em todo livro que se escreve, em todo monumento que se ergue, em todo túmulo que se constrói, em toda filosofia que se inventa, em toda religião ou partido que se funda, em todo medo que se cultiva, em todo ódio que se nutre...

- Uhum.

Em cada um desses fenômenos há um anjo, demônio, herói mítico, deus, fantasma, abstração, atuando em causa própria. Em favor da sua própria persistência.

- Por exemplo, tu sabes que nesses mundos de fantasia pop, referências às criaturas marítimas são frequentes. Tentáculos de polvo, escamas, essas coisas.

Quanto mais vocês nos evocam, conscientemente ou não, sabendo ou não da natureza e poder dos seus conjuros, mais nos fortalecemos e nos fazemos presentes em seu Mundo.

- Eu resolvi citar um bicho comum aqui nas praias da ilha que são as medusas.

Quase sempre sob formas discretas.

- É por isso que o boi da pintura tem esses tentáculos e essa aparência .

Um signo, um símbolo, um índice...

- Sim...

A imagem, física, mental ou linguística geralmente é o máximo que conseguimos alcançar do seu plano.

- Nessa minha versão da história, então, o primeiro boi de mamão não é uma criação humana.

Contudo, às vezes, conforme o poder concedido a certas entidades, nós adquirimos maior concretude.

- Mas um ser real e estranho.

Dominamos corpos, formulamos discursos, adquirimos expressão física.

- Isso. Uma criatura de origem desconhecida e aparência fantasmagórica tentando passar por um boi comum.

Profetas, líderes e artistas, frequentemente são nossos instrumentos, mas também edifícios, artefatos, crenças, modos de vida... culturas inteiras.

- Tipo um disfarce. Entendi. Tá, mas por que esse boi fantasma estaria se disfarçando?

Nós, os seres de Matárius, somos muitos...

- Não sei te dizer. Nesse ponto eu fiquei nas possibilidades. Poderia ser só curiosidade da criatura com relação aos seres humanos...

e estamos em toda a parte.

- Ou talvez ela estivesse andando por aí tentando assustar as pessoas por algum motivo. Poderia fazer parte de algum plano contra a humanidade, talvez. Não sei. É uma lacuna a ser explorada.

Nós estamos dentro das suas cabeças.

Ele abriu os olhos e sentou-se.

O sol estava indo embora. A praia estava quase vazia. Os banhistas guardavam cangas, toalhas e pranchas de surf. Um cachorro passou correndo e atirou-se ao mar. A sua frente estava a Ilha do Campeche.

Em breve anoiteceria por completo. Apesar das luzes elétricas, ele sempre pensava ver coisas se movendo na escuridão. Coisas imprecisas. Levantou e começou a caminhar em direção ao asfalto. Não queria estar na praia assim que a noite chegasse.


Luiz Souza

CAMPECHE, 1º abr. 2021.