- Paulo Andrés de Matos Villalva (Amaweks). O Boi Fantasma, 2014. Disponível em: https://diarioartografico.blogspot.com/2014/04/apropriacao.html?fbclid=IwAR1migQtQXFwSLrOh9HNJMtW6FYMeNjIzv42uA96QYF-Jh5frn-FW0Q3e-Q |
"Oioioiô, com você eu me abro.
Oioioiô, como tudo é tão triste!
Pra que foram inventar o diabo?
Agora ele pensa que existe."
- Zumbi do Mato. Meu filho diferente, 2005.
Era sábado. Estava calor e ele decidiu tentar dormir um pouco. Deu mais um pega e deitou na areia.
Fechou os olhos. A luz do sol entrou pelas suas pálpebras apesar das lentes dos óculos escuros. Ao longe, o som das ondas, um vendedor ambulante e banhistas. O vento era uma brisa suave.
Viu formas em meio à vermelhidão clara do seu interior. Pontos brilhantes e escuros que passavam por dentro dos seus globos oculares. Algumas dessas figuras lembravam minúsculas moscas voando de um lado para o outro. Outras, parecendo pequenos bastonetes lembravam criaturas microscópicas de gravuras de velhos livros didáticos.
As coisinhas passavam apressadas diante dos seus olhos. Algumas movimentavam-se de forma confusa, mas não pareciam agir aleatoriamente. Elas pareciam conscientes.
Um dos seres parou e permaneceu flutuando em meio à vermelhidão e ao caos.
Uma espécie água-viva.
Fluorescente.
Com cérebro.
E olhos.
Ele a reconheceu.
Guarde esse entendimento: Há o Mundo e Extramundos.
Ela não falava. Apenas fazia-se compreender.
Vocês habitam o primeiro, nós, os outros.
Foi um amigo artista plástico que lhe apresentou pela primeira vez aquela imagem.
Nesses lugares que existem para além do que os seres humanos definem como espaço, tempo, matéria e energia, se constituem forças autônomas e que se nutrem de tudo aquilo que nasce e emana das suas vidas interiores e corpóreas: medos, desejos, ódios, amores, saudades, memórias... Essas forças somos nós.
- Cara, de onde tu tirou essa pintura?
Somos os produtos das suas experiências no seu plano de realidade.
- Humm... Acho que eu andava com a ideia de criar uma espécie de bestiário da Ilha. Como os dos livros medievais, ou dos jogos de RPG, saca? Só que com elementos daqui.
Uma vez formadas, passamos a agir como qualquer outro ser vivente. Buscamos continuar existindo. Queremos continuar sendo.
- Interessante essa ideia.
Cada lembrança, fantasia, sonho tem sua origem nas suas pequenas e grandes experiências, pessoais e coletivas, e se mantém para além delas. Algumas de nós desaparecem cedo. Quase natimortas. Abortos do pensamento humano.
- Pois é. Acho que pensei na controvérsia sobre origem do boi de mamão, sabe? Tu já deve ter ouvido alguma coisa nesse sentido: tem gente que diz que a origem do personagem é uma, outros dizem que é outra. Rola todo um papo sobre a crença cristã de morte e ressurreição, o lance sincrético dos ídolos de fertilidade...
Outras duram um pouco mais. Às vezes, um dia, dois, alguns anos, uma vida inteira. Todas, no entanto, findam assim que os seus suportes físicos deixam de existir como carne. Nossos irmãos morrem com vocês.
- Sim.
Mas existem outros bem mais longevos. São esses os mais poderosos da nossa espécie.
- Enfim, só sei que, um dia, resolvi criar a minha própria história de origem. Uma história sobre o primeiro “avistamento” de uma criatura dessas.
São as formas de pensamento mantidas ao longo de séculos e milênios com a força de milhares, milhões, bilhões de experiências vitais acumuladas ao longo do tempo. A fé de cada crente. O ódio de cada ofendido. O ressentimento de cada humilhado.
- Hum.
- Nós, como vocês, somos mortais. Nós, como vocês, sabemos da nossa condição. Nós, como vocês, não queremos morrer. Seres de substâncias extracorpóreas, não estão submetidos às leis do Mundo, porém, também não são superiores à natureza dos Extramundos. O Esquecimento é o nosso destino - um espaço ermo, distante, de dificílimo acesso e fronteiriço com o Nada.
- Aí, então, eu peguei esse negócio do folclore e joguei lá pra época do Império.
A nossa mortalidade e corruptibilidade nos tornam tão temporais quanto vocês mesmos.
- Imperio não! Me confundi. Colônia. Eu peguei esse negócio do folclore e joguei lá pra época da colônia. Antes da ocupação açoriana ainda. Quando isso aqui era só uma ilha guarnecida.
Não somos deuses, nem demônios, apesar de muitas vezes vocês assim nos denominarem.
- Massa.
Somos, pelo contrário, criaturas dependentes e submetidas aos caprichos da matéria em movimento e do aparente acaso da história.
- Uma ilha do litoral sul do Brasil do início do século XVIII. Só com alguns soldados esquecidos nos fortes. Um punhado de soldados isolados no breu da Ilha.
Matéria e processo histórico que, se possui alguma ordenação superior, nos escapa tanto quanto a vocês.
- Uhum.
Nós, os pensamentos somos tão reais quanto qualquer elemento classificado em suas atuais tabelas periódicas e não vivemos isolados de vocês.
- Um cenário propício pra criaturas mágicas.
Nascemos no seu plano. Dentro de vocês. Vivemos num espaço psíquico de transição entre o Ser e o Nada. Chamamos esse espaço de Matárius. Outras denominações possíveis e que vocês usariam poderiam ser mente, espírito, pensamento, imaginação, fantasia, inconsciente. Mas não importam os nomes. Nem as definições.
- Avistamentos...
As criaturas de Matárius não somos inertes nem passivas.
- Sim. Acho que o meu processo de criação da pintura passou por essa espécie de mitologia que eu inventei.
Nós atuamos nos nossos mundos...
- Tipo, um universo.
.. e no seu.
- Um mundo que dá a base pra imagem.
Nos insinuamos nos seus sonos, nos seus devaneios, nas suas razões, nas suas loucuras. Nosso objetivo é o de conduzirmos vocês às nossas imagens.
- Saquei.
Às nossas evocações.
- Só que dai, pra compôr o desenho, eu misturei outras coisas. Elementos de RPG, videogames, coisas da cultura atual. Busquei referências contemporâneas que eram possíveis de serem conectadas com elementos da paisagem, natureza local.
Em todo quadro que se pinta, em todo livro que se escreve, em todo monumento que se ergue, em todo túmulo que se constrói, em toda filosofia que se inventa, em toda religião ou partido que se funda, em todo medo que se cultiva, em todo ódio que se nutre...
- Uhum.
Em cada um desses fenômenos há um anjo, demônio, herói mítico, deus, fantasma, abstração, atuando em causa própria. Em favor da sua própria persistência.
- Por exemplo, tu sabes que nesses mundos de fantasia pop, referências às criaturas marítimas são frequentes. Tentáculos de polvo, escamas, essas coisas.
Quanto mais vocês nos evocam, conscientemente ou não, sabendo ou não da natureza e poder dos seus conjuros, mais nos fortalecemos e nos fazemos presentes em seu Mundo.
- Eu resolvi citar um bicho comum aqui nas praias da ilha que são as medusas.
Quase sempre sob formas discretas.
- É por isso que o boi da pintura tem esses tentáculos e essa aparência aí.
Um signo, um símbolo, um índice...
- Sim...
A imagem, física, mental ou linguística geralmente é o máximo que conseguimos alcançar do seu plano.
- Nessa minha versão da história, então, o primeiro boi de mamão não é uma criação humana.
Contudo, às vezes, conforme o poder concedido a certas entidades, nós adquirimos maior concretude.
- Mas um ser real e estranho.
Dominamos corpos, formulamos discursos, adquirimos expressão física.
- Isso. Uma criatura de origem desconhecida e aparência fantasmagórica tentando passar por um boi comum.
Profetas, líderes e artistas, frequentemente são nossos instrumentos, mas também edifícios, artefatos, crenças, modos de vida... culturas inteiras.
- Tipo um disfarce. Entendi. Tá, mas por que esse boi fantasma estaria se disfarçando?
Nós, os seres de Matárius, somos muitos...
- Não sei te dizer. Nesse ponto eu fiquei nas possibilidades. Poderia ser só curiosidade da criatura com relação aos seres humanos...
… e estamos em toda a parte.
- Ou talvez ela estivesse andando por aí tentando assustar as pessoas por algum motivo. Poderia fazer parte de algum plano contra a humanidade, talvez. Não sei. É uma lacuna a ser explorada.
Nós estamos dentro das suas cabeças.
Ele abriu os olhos e sentou-se.
O sol estava indo embora. A praia estava quase vazia. Os banhistas guardavam cangas, toalhas e pranchas de surf. Um cachorro passou correndo e atirou-se ao mar. A sua frente estava a Ilha do Campeche.
Em breve anoiteceria por completo. Apesar das luzes elétricas, ele sempre pensava ver coisas se movendo na escuridão. Coisas imprecisas. Levantou e começou a caminhar em direção ao asfalto. Não queria estar na praia assim que a noite chegasse.
Luiz Souza
CAMPECHE, 1º abr. 2021.
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