Wladyslaw Moes (1900-1986).
Toda quarta-feira a noite, depois do expediente, Dr. Rafael Antunes
Barbosa, 32 anos, sai para transar com outros caras.
Rafael é casado com a mesma mulher desde o final da faculdade. Mas
isso já não o incomoda mais.
Hoje é quarta-feira.
É quase seis horas.
- Cris, por favor, me diz que acabou.
- Acabou, Rafa. Hoje não tem mais ninguém agendado.
-Ai, graças a Deus!
O Dr. Rafael Barbosa é psiquiatra psicanalista e tem um consultório
pelas imediações da Avenida Beira-Mar Norte, no centro de
Florianópolis. Ele costuma atender até as cinco e meia. Depois
desse horário, como faz quatro dias por semana, o homem desce o
edifício comercial aonde trabalha, pega o seu carro, busca as duas
filhas pequenas na escola e se dirige diretamente para sua casa, na
Agronômica.
Rafael faz isso mecânica e religiosamente.
Quatro dias por semana.
Mas hoje é quarta.
Oficialmente, quarta-feira é dia de vôlei com os amigos.
Nada de escolinha. Nada de pizza. Nada de série antes de dormir.
Nada disso.
Hoje é quarta-feira.
Dia de pegação.
Pegação forte.
- Desculpa, senhor. Os banheiros do shopping agora tão todos
interditados. Desculpa, tá? Faz favor...
Ás quartas, Rafael costuma frequentar os banheiros do Beira-Mar
Shopping.
O lugar lhe parece excelente: público jovem, saudável, de nível e
boa aparência. As vezes Rafael precisa pagar, mas quase sempre o que
acontece nas cabines dos mictórios é só diversão mesmo.
- Não posso usar o banheiro?
- Não, nenhum.
Hoje, infelizmente, as coisas não estão indo conforme o planejado.
Parece que houve algum problema nos encanamentos do edifício. A
auxiliar de serviços gerais não sabe informar o que há.
Não importa. O que importa é que Rafa não poderá usar nenhum dos
banheiros do Shopping.
O médico fica puto com a faxineira e sai.
- Vaca. Vou ter que ir lá pro parque.
O Parque da Luz é
uma área verde de lazer situada
bem na zona central da cidade, nos altos da rua Felipe Schmidt, na
cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz. O espaço,
durante o dia, é
frequentado por
crianças, velhos, ciclistas e desempregados. Já a noite é visitado
por pessoas em busca de sexo fácil
e drogas baratas.
Até aí, Rafa está bem
informado.
O que ele desconhece é o
passado do lugar.
A área
onde hoje fica o Parque da
Luz foi,
até a construção da Ponte, o cemitério público de
Florianópolis. Praticamente todos
os que morriam no
núcleo urbano central da cidade
eram
enterrados lá.
Isso aconteceu de 1841 até
a década de 1920. Quase setenta anos.
Setenta anos.
Centenas de covas.
Milhares de corpos.
- Olá.
Rafael não acredita na sorte que está tendo. O menino deve ter uns
17 ou 18 anos. No máximo.
- Oi. Curte o quê?
Rafa perguntou por etiqueta. Ele toparia qualquer coisa.
- O que você preferir.
O menino tem
cara de anjo. Loiro,
olhos azuis, cabelos longos
e
ondulados.
- Chupa.
A boca do rapaz é quente e macia
como uma boceta. Ele
parece ansioso. Sorve rápido o pau de Rafael. Muito rápido,
como se não visse a hora de
acabar.
- Isso...
isso... putinho...
chupa viado.
- Umpf... Umpf...
- Humm...
- Umpf... Umpf... Flap-flap, flap-flap, flap-flap... Umpf... Umpf...
O médico
ejaculou abundantemente.
O garoto não tem problema em engolir esperma.
Rafael está satisfeito.
Já é
noite.
É preciso voltar para casa.
Dr. Rafael
fecha a
braguilha e procura a
carteira no bolso traseiro
da sua
calça jeans.
***
- Eu não quero dinheiro.
- Ai, desculpa... Pensei que você tava trabalhando.
- Eu não quero o teu
dinheiro.
O menino tem
olhos tristes.
- Tá bom.
- Não preciso de dinheiro.
- Tá, entendi.
- Mas eu quero outra coisa.
- Humm?
- Eu preciso que tu
me ajudes.
- Ajuda?
Claro, claro,
podendo eu ajudo. Não
é dinheiro mesmo que tu
tás
precisando? Olha,
eu acho que eu tenho cinco reais ali no porta-luvas e...
- Eu já disse que não preciso de dinheiro.
- Certo. O que é, então?
- Eu preciso é que tu digas aos outros, os de fora do parque, que eu
estou aqui. Que eu ainda estou aqui.
- Oi?
Desculpa, eu não sei se
entendi.
- Eu preciso que tu digas aos vivos que ainda existe um túmulo aqui.
- ...?
- E que esse túmulo é meu.
- ...? Túmulo? Seu túmulo?
- Eu quero que digas a eles que eu ainda estou aqui embaixo desta
terra. Quero que digas a eles que eu não posso continuar aqui.
Rafael dá como certa a esquizofrenia do rapaz.
Ele não parece usuário de crack. Tem aspecto bom demais para isso.
O garoto está doente. Um surto. Sim, um surto, não há dúvida. O
garoto tem algum transtorno e está em surto. Talvez esquizofrenia.
Já é noite alta.
Rafael está sozinho.
No meio do nada.
Sem ninguém para pedir ajuda.
Surtos esquizofrênicos podem ser muito violentos.
- Claro. Claro que eu te ajudo. Ajudo sim. Olha só, senta um
pouquinho aqui que eu vou ali no carro pegar o meu...
- VIADINHO!!!
- Ah!
- Seu viadinho de merda!
- …!?
- Viadinho!
- Calma...
-
Invertido!
- Calma, por favor...
- Desgraçado! Uranista! Sifilitico nojento! Pederasta!
- Tudo bem, rapaz. Tá tudo bem, eu sou amigo. Não disse que
ajudava? Tudo bem.
- Sodomita!... Maricas!...
Efeminado...
- … calma...
- …
- …
O garoto está chorando. Rafael começa a sentir pena dele. Pena de
verdade. O menino tem um rosto de porcelana. Branco e delicado.
- Desculpe, senhor.
- Tudo
certo. Vai dar tudo certo. Calma.
Respira...
- Desculpe.
- Esquece.
- Eu
era herdeiro
de uma das famílias mais importantes
da Província.
- Como?
- Eu nasci num solar
próximo à Igreja.
Meu pai não era brasileiro. Era suíço. Minha mãe, italiana.
Imigraram
os dois da Europa apenas alguns anos antes do meu nascimento. Venho
de uma família de bacharéis.
Meu avô foi bacharel.
Meu pai era bacharel.
Eu estava destinado ao
Direito.
- Tá bom, tá bom... Olha só, tu precisa de ajuda profissional,
entendeu?
- Eu pertencia a uma das famílias mais respeitadas daqui. Papai
vivia aos braços com todos os políticos. Mamãe era assídua nas
soirées das esposas dos figurões. Todos os poetas faziam versinhos
à minha irmã mais nova. Todos.
- Tá. Tudo bem, tudo bem... Olha só, tu tomas alguma medicação
controlada?
- Eu estava prestes a partir para São Paulo...
- Thorazine, Haldol... alguma coisa assim? Sabes do que eu tô
falando?
- Os planos de papai eram que eu terminasse os preparatórios até o
fim do ano. Em março começariam as minhas aulas. Eu defenderia a
minha tese na Faculdade de Direito. Eu conheceria os melhores rapazes
da minha geração. Eu, um dia, chegaria à presidente de província.
Eu chegaria à presidência. Talvez além... Senador! Eu seria
Senador do Império. Talvez, Conselheiro.
- …
- Eu poderia ter sido coronel.
- …
- Lutado numa grande batalha. Ganho condecorações. Morrido cheio de
glórias, como os heróis do Paraguay.
- Humm.
- Mas que triste foi o meu fim.
- Tá. É que eu realmente preciso ir...
- Tísica. Foi a maldita tísica o que me levou.
- É que...
- Foi linda a minha missa de sétimo dia! Era domingo. Quanta gente
veio até aqui, meu deus! Todos vieram.
- ...
- No começo, todas as segundas mamãe me trazia flores. Depois foi
minha irmã. Até a velhice ela ainda vinha me ver.
- Tu moras aonde? Eu posso chamar um uber e...
- Quantas vezes eu a vi aí. Bem aí. Sempre sozinha. Sempre de luto.
Nunca se casou. Sempre dedicada à memória da família. Sempre,
sempre. Pobrezinha... Nunca me esqueceu.
- Olha...
- Escute, havia quatro cavalos no meu funeral. Quatro cavalos árabes
conduzindo o carro fúnebre no dia do meu enterro! Quatro! Eu tive um
enterro de príncipe! Poderia ter tido uma vida de rei. Rei. Que
orgulho eu teria dado ao papai...
- Tu precisas de ajuda...
- Olha, toma o meu cartão... Me liga amanhã.
- Então um dia a minha irmã deixou de vir. Ela sempre vinha. Eu
soube de imediato o que havia acontecido. Ela já estava muito velha.
Desesperei. Não haviam outros parentes. Minha irmã era a última da
família. Era a última criatura do universo a lembrar-se de mim.
Minha irmãzinha, coitada. Tenho saudades dela.
- Uhum. Certo. Deixa eu te dizer, então: eu sou médico. Sou
psiquiatra e...
- Então, nesse dia, comecei a sentir-me como que esvanecendo. As
palavras, as ideias, as imagens todas me fugiam do espírito. Os
nomes soltavam-se dos seres. A realidade começou a esboroar. Minhas
memórias foram sumindo...
- Uhum, uhum. Eu te entendo.
- Mas ainda havia a lápide.
- Lápide? Tá...
- A lápide com o meu nome.
- Olha, eu já te dei o meu cartão, guarda ele bem direitinho...
- Eu entendi tudo. Eu compreendi que a lápide era o que me mantinha
aqui. A minha lápide. A inscrição em mármore do meu nome e
sobrenome. A marcação dos meus ossos. Eu ainda existia porque algo
mantinha a minha memória. Eu entendi tudo.
- Sei, sei. Então, guarda bem esse cartãozinho...
- Mas numa manhã alguns negros encardidos chegaram empunhando pás e
picaretas.
- Você pode me ligar assim que for preciso, tá bom?
- Revolveram a terra. Violaram túmulos. Perturbaram os cadáveres...
- O meu nome é Rafael. Dr. Rafael...
- Levaram muitos daqui. Mas principalmente os mortos de maior
estirpe. Muitos parentes meus partiram daqui juntos. Nunca mais os
vi.
- Você pode falar com a minha secretária, a Cris...
- Mas haviam muitos como eu aqui. Muitos. Enterrados há muito tempo.
Porém a maioria não era composta por gente de bom nível,
compreende?
- Certo...
- Os operários não levaram os pobres-diabos. Deixaram-nos quase
todos aqui. Muitos, muitos deles.
- ...
- Tiveram apenas suas lápides derrubadas. Nunca ninguém jamais veio
reclamar os seus ossos.
- Que coisa. Então, eu tava falando da Cris. Ela é um amor...
- Não sei qual foi o erro cometido pelos administradores. Mas, a
minha lápide foi esquecida também. E digo isso com toda a
serenidade porque sei que o que houve foi um equívoco. Só pode ter
sido um equívoco. Foi um erro da administração do cemitério. Um
erro terrível. Horroroso.
- ...
- Eles me esqueceram, compreende? Meus ossos ainda estão aqui. Bem
aqui. Compreendes, o que digo? Aqui. Meus ossos ainda estão aqui.
Compreendes a gravidade disso?
- Claro que compreendo. Tu podes ligar a partir das nove da manhã.
Fala com a Cris...
- Meus ossos ainda estão aqui, ouviste!? AQUI! Misturados ao pó da
ralé! Aos crânios das prostitutas! Às vértebras dos bêbados! Aos
fêmures dos estivadores! Ás tíbias das lavadeiras! Ás falanges
dos escravos! Escravos! Aqui!
- Certo, certo... respira, por favor.
- Eu não podia desaparecer e deixar os meus restos junto ao entulho.
- Tu ligas amanhã, nós marcamos um horário e...
- Foi por isso que te dei o privilégio dos meus afagos, entendeste?
- …!?
- É por isso que eu sempre os ofereço aos passantes. Todos. Todos
eles. Todos os que cruzam pelo meu túmulo. Homens, mulheres, velhos,
velhas, meninos, meninas... até mesmo aos escravos.
- Oi?
- Aprendi o truque observando as rameiras. Sempre as mesmas, trazendo
sempre os mesmos tipos para cá. Eles sempre voltavam para elas.
Sempre lembravam delas.
- ...?
- Mas elas... Elas faziam... fazem, por tostões.
- Amigo, por favor, me escuta só um pouco.
- Tostões!
- Calma, por favor...
- Eu não faço por tostões...
- Calma...
- Não, não, não...
- Calma...
- Não por tostões. Eu não preciso de tostões. Eu tenho posses.
Minha família tem um solar perto da Igreja.
- Moço, é melhor tu me dizer o teu nome também. Talvez eu possa...
- Um solar lindo.
- Escuta, eu preciso saber o teu nome.
- Um jardim enorme.
- Olha pra mim, eu quero o teu nome, por favor.
- Pardais...
- Garoto, olha pra mim. O teu nome. Qual é o teu nome?
- Gaturamos...
- Ei! Me diz o teu nome!
- Sabiás...
- Qual o teu nome!?
- Meu nome...?
- Isso. Teu nome.
- Meu nome...?
- Sim, qual o teu nome?
- Eu...
- …
- …
- Eu não...
- ...
- Eu não me lembro mais.
***
Quando Rafael chegou em casa era quase dez da noite. Não beijou a
mulher como de costume. Foi direto para a ducha.
- E aí, môr. Como é que foi o vôlei hoje?
- Foi bom.
- Foi?
- Foi. Foi diferente.
Não jantou. Não foi ver as meninas no quarto e nem perguntou como
havia sido o dia na escolinha.
Deitou.
Ao dar o beijo de boa noite na mulher, Rafael notou que Vera havia
vestido a sua melhor calcinha.
Imediatamente ele fechou os olhos e buscou imagens.
Cenas diversas. Fragmentos. Imagens desconexas. Algumas completamente
fantasiosas. Havia partes de corpos humanos, fotogramas de gestos,
lembranças de sons. Um olhar, um par de nádegas, uma barriga, um
palavrão sussurrado ao pé do ouvido. Geralmente essas buscas
demoravam alguns minutos e eram pouco nítidas, mas hoje não. Hoje
havia algo fresco e vivo na sua cabeça.
Rafael pensou no menino do parque.
Lembrou dos seus cabelos longos, ondulados e revoltos de poeta
romântico.
- Humm...
Do rosto delicado.
- Humm... Humm...
A boca.
- Humm... Humm... Isso...
Os lábios vermelhos. Protuberantes.
- Delícia.
Uns lábios macios e quentes.
- Isso, vai...
Como uma boceta.
- Fode!
É quase meia-noite.
Abraçado à sua esposa, a
arquiteta Vera Lúcia
Antunes Barbosa, o Dr.
Rafael Barbosa
dorme pensando no menino loiro
do Parque
da Luz.
Amanhã é quinta-feira.
Faltam seis dias para quarta.
Luiz Souza
CAMPECHE, 25 mar. 2021.