sábado, 3 de maio de 2025

"ANTROPOCENO POBRE" (Link para o livro completo)

 


"ANTROPOCENO POBRE", de Luiz Souza

(Link de acesso livre para o livro completo)



- Arte original da capa do livro "Antropoceno Pobre" (imagem programada com IA) -

 

 "Antropoceno Pobre" (2025) é uma coletânea de contos do autor brasileiro Luiz Souza, publicada de forma independente em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. A obra propõe uma "literatura glitch" ou "estética do erro", explorando narrativas fragmentadas em um cenário distópico que mistura passado, presente e futuro. Com uma linguagem anacrônica e propositalmente falhada, os contos abordam temas como marginalidade, racismo, memória e resistência cultural, centrados em personagens outsiders como poetas negros, mães enlutadas e ciborgues decadentes. Dividido em quatro partes ("Memória Corrompida", "Malware Moral", "Core Dump Social", "Tela Azul da Espécie") e acompanhado de três anexos teóricos, o livro combina ficção, ensaio e manifesto, oferecendo uma crítica à historiografia oficial e ao capitalismo tardio. A capa e a sua diagramação, criadas pelo próprio autor via programação algorítmica, reforçam e exemplificam visualmente a estética do livro.


Para realizar o download livre e completo da obra, acesse: 

https://archive.org/details/souza-luiz.-antropoceno-pobre-2025

9. O PAVÃO E O SAPO (Adendo a "Antropoceno...")

 



O PAVÃO E O SAPO


Existiu, certa vez, um lindo pavão, de penas coloridas e andar gracioso. De todos os pavões ele era o de plumagem mais vistosa e delicada, e dentre todos os animais era ele o mais soberbo. Não havia na floresta animal que ao vê-lo não dissesse, "como é magnífico o Pavão", e sorrisse por ele. Contudo, apesar de belo e admirado, o Pavão vivia triste.

Não entendiam os outros bichos o porquê disso: o Pavão era triste, e era triste porque parecia ser o único a não enxergar sua própria beleza. Vivia cabisbaixo, com olhares perdidos, aos supiros, e sempre lamentando-se de sua pouca sorte aos outros animais. "Ai de mim, Dona Pata!", "Como sou desgraçado, Seu Castor!", "Ó tristeza, Dona Borboleta!", "Como sou desajeitado e como são pobres as minhas plumas!". E ouvindo isso todos os outros animais se penalizavam dele, e tentavam convencê-lo do contrário. E sempre o Pavão estava rodeado de outros bichos, que a todo instante lembravam-no da beleza de suas cores e da elegância do seu andar.

Assim, seguiam as coisas na floresta. E a todos o belo e triste pavão ouvia, descrente e humilde.

Numa manhã, passeava o Pavão pela floresta, acompanhado, como de costume, por um punhado de outros animaizinhos, que prestativos, dedicavam-se a tarefa de exaltar quase em coro, as virtudes do Pavão, que os escutava com ares invariavelmente tristes.

Ao passarem próximos a um lago, o Sapo avistou a cena, e ouviu-o dizer as mesmas queixas costumeiras aos que o seguiam: "Agradeço-lhes as    palavras generosas, mas não vejo onde possam encontrar beleza alguma em mim. Minhas penas não são vistosas e meu andar é por demais desengonçado e patético! Como sou triste, amigos!!"

E o Sapo que era sincero e estava aborrecido com tanta insistência por respostas, observou melhor o Pavão, e acostumado a estética dos lamaçais e pântanos, não encontrou graça alguma nele. Desta forma,    concordando com aquelas palavras, pronunciou-se tranquilo: "De fato, estou de acordo contigo, Pavão. Todas as manhãs contemplo os inúmeros bichos que aqui vem beber neste lago e, aos meus olhos, não és tão belo quanto alegam esses que aí te acompanham. Para mim, por exemplo, nada é tão lindo quanto as cores da Salamandra ou as pupilas fendidas e terríveis do Sr. Jacaré. Compreendo esses teus ais". E após ter dito isto, virou-se despreocupado e pulou de volta à água.

Nesse momento todos os bichos se entreolharam surpresos. A Pata se escandalizou. A Libélula não quis acreditar no que ouviu e pediu confirmação à Abelha, que zumbiu confirmando o aparente absurdo. Assim, voltando-se todos preocupados para o Pavão, encontraram-no fitando apático as águas do lago. Nisso, rompendo o silêncio, o Pavão exclamou furioso: "Oras, e o que entende de beleza um sapo!?".

E depois disso, o Pavão, que amava admirar seu próprio reflexo nas margens dos lagos, passou a evitá-los.

“Os Sapos os sujam”, dizia aos outros animais. O Sapo, ao saber disso, comentava sem ligar importância: “Deve ser por isso que as lagoas agora andam tão mais silenciosas”.


⌘ ⌘ ⌘


sexta-feira, 2 de maio de 2025

22. UM TRIBUTO AO GRANDE C.O.

 


UM TRIBUTO AO GRANDE C.O.


“ '0 rei está nu! O rei está nu!!' - começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: 'O desfile tem que continuar!!' E, assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram, segurando a sua cauda invisível."

- Hans Christian Andersen ("A Roupa Nova do Rei", 1837).


Quando o primeiro módulo de exploração cruzou a atmosfera do planeta antigamente chamado Terra (hoje EDISON-1) verificou-se imediatamente o nível de toxidade do lugar.

- Vocês tem certeza de que isto é uma boa ideia? *, perguntou o piloto à nave-mãe.

- Apenas desça, respondeu uma voz no rádio.

A quantidade de radiação e gases letais verificados eram suficientes para matar até mesmo uma barata marciana. As montanhas de vidro, polietileno e outros detritos compunham um horizonte dominado por um céu agora desprovido algo que poderia ser chamado “camada de ozônio”.

- Cretinos, disse o cosmonauta depois de desligar o comunicador.

Chamava-se X CC O – X, mas, em casa ou informalmente, chamavam-no apenas “Xis”.

Xis não gostava do seu trabalho, mas precisava pagar seus créditos de oxigênio.

- Olá!?

O som da voz do explorador espacial reverberava pela vastidão das ruínas.

- Tem alguma coisa viva nesta maldita lixeira?

Nenhuma resposta. O cosmonauta ligou o comunicador portátil.

- Unidade de exploração para nave-mãe, acabo de realizar varredura completa de toda a superfície. Só achei montanhas de polietileno e vidro. Nenhum registro de atividade biológica ou similares. Solicito permissão para retornar a bordo.

- Permissão negada, respondeu o comando da missão, não podemos retornar à base sem comprovação de pouso. Encontre qualquer coisa que sirva e traga para nós.

O cosmonauta olhou ao redor. No chão viu um objeto pequeno e quadrangular. Fez o teste com o espectrofotômetro e verificou a composição química do vestígio. O contador Geiger também não acusou nada que impedisse a coleta. O objeto não era letal.

- Certo. Já achei. Podem me levar de volta.

A liberação das comportas do módulo veio na seqüência do click do comunicador.

No salão principal do palácio o cérebro de Elon Musk flutuava dentro de um vaso hermeticamente fechado. Conectado a um processador de ondas neurais, o órgão de mais de 600 anos de antiguidade bradava por meio de potentes caixas de som:

- Onde está meu brinquedo!? Quero o meu brinquedo agora ou destruo cada um de vocês, seus malditos macacos!

Arg Umbo Adai Jr., chefe da sessão de Cosmoarqueologia do Império irrompeu.

- Grande Singularidade, Cérebro dos Cérebros, Rei do Universo, encontramos algo que certamente irá agradá-lo.

E com um gesto brusco fez uma serviçal de látex e silício adentrar ao grande salão real. Ela carregava uma espécie de bandeja de ouro.

- Trazemos da nossa última expedição, Grande Singularidade, algo que o fará lembrar-se dos velhos dias.

E a serviçal, curvando-se diante do recipiente onde submergia o órgão do venerável magnata, suspendeu a bandeja por sobre a própria cabeça.

- Eis, Líder Máximo, o que encontramos.

- Não...

- Sim, Magnífico C.O.

- EU NÃO ACREDITO!

E as caixas de som ressoaram microfonia pelos quatro cantos da megaestação orbital habitada unicamente por funcionários sintéticos e serviçais biológicos devidamente chipados.

- Um smartphone! Um smartphone de verdade! Vocês trouxeram um smartphone de verdade só para mim! Eu adoro vocês, meus colaboradores!

- Sabíamos que isto faria a vossa alegria, Grande Empreendedor.

E então Elon Musk entregou-se a alguns minutos de doces sonhos.

Ele gostava muito de recordar o passado e de colecionar coisas raras.

Arg Umbo Adai Jr. suspirou aliviado. Ele mais uma vez havia provado o seu valor e não seria rebaixado na escala dos seres úteis.

Pelo menos não naquele instante.

“Mais uma semana de feliz préstimos”, pensou com seus neuroimplantes, “ou duas”.

“Não!”, gritou o cérebro.

Adai Jr. paralisou parcialmente seu sistema nervoso sintético por 0,5 milissegundos.

“Um carregador, seus inúteis!”, Elon Musk esbravejou soando, em seus alto-falantes, como Odin no próprio Salão do Valhalla.

“Vocês esqueceram o meu maldito carregado!”, caiu em prantos o C.O.

Arg Umbo Adai Jr. aterrou-se.


⌘ ⌘ ⌘



FIM


DE


“ANTROPOCENO POBRE”.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

21. OSSOS DE POLÍMERO

 



OSSOS DE POLÍMERO


"Vamos inventar o amanhã e parar de nos preocupar com o passado."

- Steve Jobs (Discurso à Apple, 2007).



Chamo-me Zor. Sou um sobrevivente num mundo que se suicidou.

É o que eu vejo ao olhar pra mim e ao meu redor.

E não me comovo mais.

Andros serviu a dose sem olhar pra minha cara.

Sabia que eu não tinha crédito, mas às vezes deixava eu ficar ali só pelo barulho. Eu era o móvel quebrado enfeitando o canto do bar dele quando todas as coisas que infestavam a noite já tinham voltado pros seus esgotos.

- Tu sabes o que é guardar parte do teu próprio esqueleto interno num bolso, Andros? - perguntei tentando provocar uma conversa e sacando a minha caixinha de munição que eu uso como porta coisas.

O barman, sem responder, olhou o borg cheio de implantes no crânio, do outro lado do balcão. O ciberviciado girou a cabeça como se estivesse em outro mundo. Acho que estava mesmo conectado em alguma rede neural. Era comum alguns ficarem ali praticando voyerismo on-line.

Andros limpou um copo com o mesmo pano podre de sempre.

- Tá cheirando pilha de novo, Z?

Abri a caixa. Dentro, três fios de cobre e um osso de polímero que já foi meu joelho direito.

- Comprei esse joelho quando tinha 48 ciclos. Tava trabalhando na usina de reciclagem 3. Trocava filtro de césio 12 horas por dia. Aí um cilindro vazou e comeu minha perna.

O Andros parou de limpar o copo.

- Me deram esse osso de presente quando me aposentei. Disseram que era "gratidão da Empresa". - Dei uma risada que virou tosse. - Três meses depois, suspenderam minha aposentadoria por corte de gastos. Eles precisavam de todo o lítio disponível, eles disseram.

Joguei o osso no balcão. Ele rolou. Andros olhou com indiferença.

- E aí tu ficou com o osso e eles ficaram com os créditos de lítio?

- Fiquei com o que importava. Meu ex-patrão enfiou uma bala nos miolos no ano seguinte. Ele era humano. Não me pergunte porquê fez isso.

O silêncio de Andros foi a única resposta.

- Existem muitas maneiras de ser feito em pedacinhos, Andros.

O bar ficou quieto. Só o zumbido do freezer quebrado enchendo o ar. Andros devolveu meu joelho e serviu outra dose.

- Essa é pra tua coleção de ossinhos, Z.

Bebi de um gole. Ardia como óleo. Acredito mesmo que 30% daquilo era óleo queimado.

Coloquei de volta o osso na minha caixa de munições. Guardei ao lado de um canivete e um teaser velho.

Preciso sempre lembrar: chamo-me Zor.

Sou um robô Classe C da Vanguard Steel Corporation. Meu número de fabricação é 6.882.799 e fui operário 24/7. Hoje estou obsoleto, danificado e sobrevivendo de pilhas descartadas num mundo que já se suicidou e quer esquecer isto.

É o que eu vejo ao meu redor.

São apenas humanos”, digo para mim mesmo, “são seus bugs’.

Do lado de fora, um dron de vigilância passou clareando a rua.

Deixei que iluminasse minha caneca vazia - meu único espelho nesses tempos que descartam e esquecem seus próprios ossos.

Sintéticos ou não.


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"ANTROPOCENO POBRE" (Link para o livro completo)

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