PARTE IV:
TELA AZUL DA ESPÉCIE
20.
A FISSURA DE G-G
HEMÍSFÉRIO SUL DO PLANETA TERRA
SETOR OESTE DO TERRITÓRIO HIGIENIZADO
NOVA DESTERRO
46 ANOS APÓS O ÚLTIMO SURTO...
- Não existem mais os de fora. Nós demos cabo deles. Eu mesmo
empilhei uns tantos e queimei com gasolina. Tu já visse um negócio
desses? É engraçado.
A coisa gargalhou e deu mais um gole na caneca de alumínio.
Havia uma luz azul muito fria que preenchia o escuro do ambiente. Era
um monitor de 386 ligado 24h por dia mostrando os dados processados
por um Intel-MegaCore Zeta. Não se produzia Intels com tamanha carga
desde que o Atlântico subiu. Isso foi antes das fogueiras dos
americanos, claro. Depois daquilo só os africanos conseguiram
alcançar um grau tão alto de tecnologia.
Mas deixemos os detalhes do tempo.
Ninguém mais quer saber de história nos dias de hoje.
O fato é que a coisa bebia seu óleo e sorria mostrando dentes
podres e implantes de lítio.
- Eu fodi uns tantos.
Um casal de lesmas se pegava num canto do bar.
Os presentes não se importavam. Transar era comum em lugares
públicos e ninguém ligava para lesmas. Tudo bem se elas não
começassem a fazer barulho ou querer forçar alguma barra com alguém
pouco disposto.
- Fodeu, sim. Eu vi. Era uma pilha de uns quatro metros de altura!
Quem disse isso foi uma iputa velha de cara engessada pelas
sucessivas aplicações de hidrox.
- Cala a boca, múmia!
- Vem calar, seu brocha.
Ainda não era alta madrugada e os brigadianos não haviam chegado
para fechar o comércio ilegal de Nova Desterro.
Em breve isto ocorreria.
De fato, os soldados não viam a hora de se divertir um pouco com
aqueles novos teasers que a Empresa importou de Taiwan.
- Nós demos cabo deles. Botei fogo nuns tantos.
A coisa arrotou, deu mais um gole na caneca de alumínio imunda e
coçou a barriga.
Ao longe, os vagabundos na esquina já ouviam as primeiras sirenes e
os zunidos dos teasers.
- - -
Quando G-G acordou pensou que havia algo lá fora sufocando no
próprio vômito. Possivelmente um drog em convulsão ou, o que era
bem menos provável, um cachorro.
El, contudo, logo conscienciou:
- Sou eu. É dentro de mim.
E era mesmo. Parecia algo querendo sair do seu estômago. G-G logo
pensou em velhos movies de ficção científica. Nem cogitou câncer
ou pluroma.
El era 68% humano. O resto era plástico e “gelatina”. Gelatina
era como os civis chamavam o composto sintético que substituía os
tecidos biológicos comprometidos. G-G achava mais barato substituir
peças do que tentar consertar numa casa de bio qualquer.
Seu estômago, contudo, ainda era de carne.
Tem algo dentro de mim, pensou.
E a coisa roncava cada vez mais alto. Como se tentasse articular uma
palavra.
Não havia dor. El atirou para fora da cama o manto de algodão cru.
Olhou pela janela e viu que ainda era noite.
Um dron cruzou o horizonte fazendo o seu zunido peculiar.
Tem algo dentro de mim.
El suava frio e contorcia-se tentando calar aquela coisa.
Tem algo dentro de mim.
Sentiu uma pressão no abdômen nu e magro.
Não havia dor, mas uma sensação de enorme vazio. Um vazio tão
grande que não poderia ser preenchido com nenhuma outra coisa se não
pilhas zinco. Zinco do bom. Puro e pesado.
Era 3 da manhã quando G-G vestiu seu casaco, pôs suas botas,
calibrou o renderizador, apertou o botão térreo da torre e chegou
ao solo.
O cheiro de lixo lhe causou náusea e a coisa dentro dele parecia que
queria pronunciar algo.
Talvez a entidade dentro do seu estômago estivesse tentando
simplesmente lhe dizer “pilhas de zinco”.
O primeiro transeunte com quem topasse provavelmente voltaria para
casa sem um dos seus implantes.
G-G não podia evitar o impulso quando ficava assim.
Precisava ingerir algumas pilhas.
Pilhas frescas. Faiscantes.
- - -
Quando os brigadianos chegaram com os teasers, o bar do Andros já
estava fechando as grades de segurança.
G-G passou por dois deles e viu seus emblemas piscando.
Eram da tropa de pacificação. Eles tinham armas que G-G não
saberia nem pronunciar os nomes. Viu, contudo, que os bons e velhos
teasers estavam todos em riste e carregados em potência letal.
Melhor baixar a cabeça e cruzar rápido a rua.
Dois brigadianos olharam G-G fixamente tentando captar as suas
intenções.
A coisa dentro dele, nesse instante, apenas balbuciou.
“Fome”.
Passou reto pela frente do bar.
Cruzou a esquina à esquerda. Olhou para os lados para verificar se
não havia mais nada na rua e escapou para dentro da escuridão de
uma viela.
Havia uma porta.
Era ali que G-G sempre ia quando tinha problemas.
El apertou o fone e, do outro lado, uma voz meio rouca e cansada
atendeu.
Era Andros.
- O que tu queres. Acabei de fechar a entrada. Não quero ninguém
incinerado aqui hoje.
- Andros, disse G-G, eu preciso de um pouco de eletro. Tenho
créditos. E mostrou o pulso.
- Quanto você tem aí?
- Cinco mil e oitocentos.
Andros riu com sua boca podre e salpicada de lítio.
- Entra logo.
Ouviu-se o som de um ferrolho sendo arrastado e a porta abrir-se. G-G
a cruzou rapidamente já antevendo o prazer incomparável de receber
no lóbulo uma boa descarga de pilhas.
- - -
- Não gosto de receber gente em crise aqui depois dos brigadianos
fazerem a limpa pelo Centro.
- Eu sei. Mas preciso de uma dose.
Andros abriu a caixa onde guardava as pilhas. Havia de tudo ali.
Zinco enriquecido, Carbono 359, ampolas de speed...
- As pilhas são novas. Não compro recauchutadas. Também não
extraio nada de gente morta. Só trabalho com material de primeira.
- Eu sei.
- Então tu sabes que 5800 não paga nem o transporte, né?
- Andros, eu preciso...
- E eu também preciso viver. Tu só tens isso aí de crédito?
- Só.
Andros olhou para a caixa. Havia 3 cápsulas. Faria um pequeno
abatimento para G-G. Por alguma razão gostava de el.
- Toma.
E estendeu a mão segurando uma das cápsulas.
- É isso o que tenho pra ti hoje. Faço por 5800 mesmo.
G-G fez menção de agarrar a cápsula. Andros fechou a mão.
- Primeiro a transferência.
- Certo, certo.
G-G levantou o braço e arregaçou as mangas do casaco. Andros passou
a máquina de créditos por sobre o ponto de implante e imediatamente
recebeu seu comprovamente de depósito. Na seqüência voltou a abrir
a mão. A pilha de zinco estava ali. Prateada. Faiscante. Linda.
Linda.
Dentro de el a coisa recomeçava a manifestar-se, mas agora era
apenas um ronronar suave.
Quando G-G engoliu a cápsula e sentiu a primeira descarga pensou que
nada poderia se comparar a isto. Nem proteína animal, nem água
fluorificada, nem sexo analógico, nada. Absolutamente nada. Era como
se cada célula ou circuito dentro do seu corpo resetassem e
voltassem com tudo. Vapor total.
O vazio foi embora e a coisa dentro de el silenciou por completo.
- Obrigado, Andros. Você é um pai pra mim.
- Se manda, logo. Isso aqui não é albergue.
Já era quase de manhã quando G-G pôde finalmente recolher sua
manta de algodão encardida e descansar.
Lá fora o sol queimava inclemente e a multidão já se aglomerava
nas ruas.
Dentro do seu cubículo, G-G dormia como se o seu sono fosse a
própria morte.
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