sábado, 3 de maio de 2025

"ANTROPOCENO POBRE" (Link para o livro completo)

 


"ANTROPOCENO POBRE", de Luiz Souza

(Link de acesso livre para o livro completo)



- Arte original da capa do livro "Antropoceno Pobre" (imagem programada com IA) -

 

 "Antropoceno Pobre" (2025) é uma coletânea de contos do autor brasileiro Luiz Souza, publicada de forma independente em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. A obra propõe uma "literatura glitch" ou "estética do erro", explorando narrativas fragmentadas em um cenário distópico que mistura passado, presente e futuro. Com uma linguagem anacrônica e propositalmente falhada, os contos abordam temas como marginalidade, racismo, memória e resistência cultural, centrados em personagens outsiders como poetas negros, mães enlutadas e ciborgues decadentes. Dividido em quatro partes ("Memória Corrompida", "Malware Moral", "Core Dump Social", "Tela Azul da Espécie") e acompanhado de três anexos teóricos, o livro combina ficção, ensaio e manifesto, oferecendo uma crítica à historiografia oficial e ao capitalismo tardio. A capa e a sua diagramação, criadas pelo próprio autor via programação algorítmica, reforçam e exemplificam visualmente a estética do livro.


Para realizar o download livre e completo da obra, acesse: 

https://archive.org/details/souza-luiz.-antropoceno-pobre-2025

9. O PAVÃO E O SAPO (Adendo a "Antropoceno...")

 



O PAVÃO E O SAPO


Existiu, certa vez, um lindo pavão, de penas coloridas e andar gracioso. De todos os pavões ele era o de plumagem mais vistosa e delicada, e dentre todos os animais era ele o mais soberbo. Não havia na floresta animal que ao vê-lo não dissesse, "como é magnífico o Pavão", e sorrisse por ele. Contudo, apesar de belo e admirado, o Pavão vivia triste.

Não entendiam os outros bichos o porquê disso: o Pavão era triste, e era triste porque parecia ser o único a não enxergar sua própria beleza. Vivia cabisbaixo, com olhares perdidos, aos supiros, e sempre lamentando-se de sua pouca sorte aos outros animais. "Ai de mim, Dona Pata!", "Como sou desgraçado, Seu Castor!", "Ó tristeza, Dona Borboleta!", "Como sou desajeitado e como são pobres as minhas plumas!". E ouvindo isso todos os outros animais se penalizavam dele, e tentavam convencê-lo do contrário. E sempre o Pavão estava rodeado de outros bichos, que a todo instante lembravam-no da beleza de suas cores e da elegância do seu andar.

Assim, seguiam as coisas na floresta. E a todos o belo e triste pavão ouvia, descrente e humilde.

Numa manhã, passeava o Pavão pela floresta, acompanhado, como de costume, por um punhado de outros animaizinhos, que prestativos, dedicavam-se a tarefa de exaltar quase em coro, as virtudes do Pavão, que os escutava com ares invariavelmente tristes.

Ao passarem próximos a um lago, o Sapo avistou a cena, e ouviu-o dizer as mesmas queixas costumeiras aos que o seguiam: "Agradeço-lhes as    palavras generosas, mas não vejo onde possam encontrar beleza alguma em mim. Minhas penas não são vistosas e meu andar é por demais desengonçado e patético! Como sou triste, amigos!!"

E o Sapo que era sincero e estava aborrecido com tanta insistência por respostas, observou melhor o Pavão, e acostumado a estética dos lamaçais e pântanos, não encontrou graça alguma nele. Desta forma,    concordando com aquelas palavras, pronunciou-se tranquilo: "De fato, estou de acordo contigo, Pavão. Todas as manhãs contemplo os inúmeros bichos que aqui vem beber neste lago e, aos meus olhos, não és tão belo quanto alegam esses que aí te acompanham. Para mim, por exemplo, nada é tão lindo quanto as cores da Salamandra ou as pupilas fendidas e terríveis do Sr. Jacaré. Compreendo esses teus ais". E após ter dito isto, virou-se despreocupado e pulou de volta à água.

Nesse momento todos os bichos se entreolharam surpresos. A Pata se escandalizou. A Libélula não quis acreditar no que ouviu e pediu confirmação à Abelha, que zumbiu confirmando o aparente absurdo. Assim, voltando-se todos preocupados para o Pavão, encontraram-no fitando apático as águas do lago. Nisso, rompendo o silêncio, o Pavão exclamou furioso: "Oras, e o que entende de beleza um sapo!?".

E depois disso, o Pavão, que amava admirar seu próprio reflexo nas margens dos lagos, passou a evitá-los.

“Os Sapos os sujam”, dizia aos outros animais. O Sapo, ao saber disso, comentava sem ligar importância: “Deve ser por isso que as lagoas agora andam tão mais silenciosas”.


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sexta-feira, 2 de maio de 2025

22. UM TRIBUTO AO GRANDE C.O.

 


UM TRIBUTO AO GRANDE C.O.


“ '0 rei está nu! O rei está nu!!' - começou a gritar o povo. E o rei ouvindo, fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: 'O desfile tem que continuar!!' E, assim, continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram, segurando a sua cauda invisível."

- Hans Christian Andersen ("A Roupa Nova do Rei", 1837).


Quando o primeiro módulo de exploração cruzou a atmosfera do planeta antigamente chamado Terra (hoje EDISON-1) verificou-se imediatamente o nível de toxidade do lugar.

- Vocês tem certeza de que isto é uma boa ideia? *, perguntou o piloto à nave-mãe.

- Apenas desça, respondeu uma voz no rádio.

A quantidade de radiação e gases letais verificados eram suficientes para matar até mesmo uma barata marciana. As montanhas de vidro, polietileno e outros detritos compunham um horizonte dominado por um céu agora desprovido algo que poderia ser chamado “camada de ozônio”.

- Cretinos, disse o cosmonauta depois de desligar o comunicador.

Chamava-se X CC O – X, mas, em casa ou informalmente, chamavam-no apenas “Xis”.

Xis não gostava do seu trabalho, mas precisava pagar seus créditos de oxigênio.

- Olá!?

O som da voz do explorador espacial reverberava pela vastidão das ruínas.

- Tem alguma coisa viva nesta maldita lixeira?

Nenhuma resposta. O cosmonauta ligou o comunicador portátil.

- Unidade de exploração para nave-mãe, acabo de realizar varredura completa de toda a superfície. Só achei montanhas de polietileno e vidro. Nenhum registro de atividade biológica ou similares. Solicito permissão para retornar a bordo.

- Permissão negada, respondeu o comando da missão, não podemos retornar à base sem comprovação de pouso. Encontre qualquer coisa que sirva e traga para nós.

O cosmonauta olhou ao redor. No chão viu um objeto pequeno e quadrangular. Fez o teste com o espectrofotômetro e verificou a composição química do vestígio. O contador Geiger também não acusou nada que impedisse a coleta. O objeto não era letal.

- Certo. Já achei. Podem me levar de volta.

A liberação das comportas do módulo veio na seqüência do click do comunicador.

No salão principal do palácio o cérebro de Elon Musk flutuava dentro de um vaso hermeticamente fechado. Conectado a um processador de ondas neurais, o órgão de mais de 600 anos de antiguidade bradava por meio de potentes caixas de som:

- Onde está meu brinquedo!? Quero o meu brinquedo agora ou destruo cada um de vocês, seus malditos macacos!

Arg Umbo Adai Jr., chefe da sessão de Cosmoarqueologia do Império irrompeu.

- Grande Singularidade, Cérebro dos Cérebros, Rei do Universo, encontramos algo que certamente irá agradá-lo.

E com um gesto brusco fez uma serviçal de látex e silício adentrar ao grande salão real. Ela carregava uma espécie de bandeja de ouro.

- Trazemos da nossa última expedição, Grande Singularidade, algo que o fará lembrar-se dos velhos dias.

E a serviçal, curvando-se diante do recipiente onde submergia o órgão do venerável magnata, suspendeu a bandeja por sobre a própria cabeça.

- Eis, Líder Máximo, o que encontramos.

- Não...

- Sim, Magnífico C.O.

- EU NÃO ACREDITO!

E as caixas de som ressoaram microfonia pelos quatro cantos da megaestação orbital habitada unicamente por funcionários sintéticos e serviçais biológicos devidamente chipados.

- Um smartphone! Um smartphone de verdade! Vocês trouxeram um smartphone de verdade só para mim! Eu adoro vocês, meus colaboradores!

- Sabíamos que isto faria a vossa alegria, Grande Empreendedor.

E então Elon Musk entregou-se a alguns minutos de doces sonhos.

Ele gostava muito de recordar o passado e de colecionar coisas raras.

Arg Umbo Adai Jr. suspirou aliviado. Ele mais uma vez havia provado o seu valor e não seria rebaixado na escala dos seres úteis.

Pelo menos não naquele instante.

“Mais uma semana de feliz préstimos”, pensou com seus neuroimplantes, “ou duas”.

“Não!”, gritou o cérebro.

Adai Jr. paralisou parcialmente seu sistema nervoso sintético por 0,5 milissegundos.

“Um carregador, seus inúteis!”, Elon Musk esbravejou soando, em seus alto-falantes, como Odin no próprio Salão do Valhalla.

“Vocês esqueceram o meu maldito carregado!”, caiu em prantos o C.O.

Arg Umbo Adai Jr. aterrou-se.


⌘ ⌘ ⌘



FIM


DE


“ANTROPOCENO POBRE”.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

21. OSSOS DE POLÍMERO

 



OSSOS DE POLÍMERO


"Vamos inventar o amanhã e parar de nos preocupar com o passado."

- Steve Jobs (Discurso à Apple, 2007).



Chamo-me Zor. Sou um sobrevivente num mundo que se suicidou.

É o que eu vejo ao olhar pra mim e ao meu redor.

E não me comovo mais.

Andros serviu a dose sem olhar pra minha cara.

Sabia que eu não tinha crédito, mas às vezes deixava eu ficar ali só pelo barulho. Eu era o móvel quebrado enfeitando o canto do bar dele quando todas as coisas que infestavam a noite já tinham voltado pros seus esgotos.

- Tu sabes o que é guardar parte do teu próprio esqueleto interno num bolso, Andros? - perguntei tentando provocar uma conversa e sacando a minha caixinha de munição que eu uso como porta coisas.

O barman, sem responder, olhou o borg cheio de implantes no crânio, do outro lado do balcão. O ciberviciado girou a cabeça como se estivesse em outro mundo. Acho que estava mesmo conectado em alguma rede neural. Era comum alguns ficarem ali praticando voyerismo on-line.

Andros limpou um copo com o mesmo pano podre de sempre.

- Tá cheirando pilha de novo, Z?

Abri a caixa. Dentro, três fios de cobre e um osso de polímero que já foi meu joelho direito.

- Comprei esse joelho quando tinha 48 ciclos. Tava trabalhando na usina de reciclagem 3. Trocava filtro de césio 12 horas por dia. Aí um cilindro vazou e comeu minha perna.

O Andros parou de limpar o copo.

- Me deram esse osso de presente quando me aposentei. Disseram que era "gratidão da Empresa". - Dei uma risada que virou tosse. - Três meses depois, suspenderam minha aposentadoria por corte de gastos. Eles precisavam de todo o lítio disponível, eles disseram.

Joguei o osso no balcão. Ele rolou. Andros olhou com indiferença.

- E aí tu ficou com o osso e eles ficaram com os créditos de lítio?

- Fiquei com o que importava. Meu ex-patrão enfiou uma bala nos miolos no ano seguinte. Ele era humano. Não me pergunte porquê fez isso.

O silêncio de Andros foi a única resposta.

- Existem muitas maneiras de ser feito em pedacinhos, Andros.

O bar ficou quieto. Só o zumbido do freezer quebrado enchendo o ar. Andros devolveu meu joelho e serviu outra dose.

- Essa é pra tua coleção de ossinhos, Z.

Bebi de um gole. Ardia como óleo. Acredito mesmo que 30% daquilo era óleo queimado.

Coloquei de volta o osso na minha caixa de munições. Guardei ao lado de um canivete e um teaser velho.

Preciso sempre lembrar: chamo-me Zor.

Sou um robô Classe C da Vanguard Steel Corporation. Meu número de fabricação é 6.882.799 e fui operário 24/7. Hoje estou obsoleto, danificado e sobrevivendo de pilhas descartadas num mundo que já se suicidou e quer esquecer isto.

É o que eu vejo ao meu redor.

São apenas humanos”, digo para mim mesmo, “são seus bugs’.

Do lado de fora, um dron de vigilância passou clareando a rua.

Deixei que iluminasse minha caneca vazia - meu único espelho nesses tempos que descartam e esquecem seus próprios ossos.

Sintéticos ou não.


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quarta-feira, 30 de abril de 2025

20. A FISSURA DE G-G

 



PARTE IV:

TELA AZUL DA ESPÉCIE


20.

A FISSURA DE G-G


HEMÍSFÉRIO SUL DO PLANETA TERRA

SETOR OESTE DO TERRITÓRIO HIGIENIZADO

NOVA DESTERRO

46 ANOS APÓS O ÚLTIMO SURTO...


- Não existem mais os de fora. Nós demos cabo deles. Eu mesmo empilhei uns tantos e queimei com gasolina. Tu já visse um negócio desses? É engraçado.

A coisa gargalhou e deu mais um gole na caneca de alumínio.

Havia uma luz azul muito fria que preenchia o escuro do ambiente. Era um monitor de 386 ligado 24h por dia mostrando os dados processados por um Intel-MegaCore Zeta. Não se produzia Intels com tamanha carga desde que o Atlântico subiu. Isso foi antes das fogueiras dos americanos, claro. Depois daquilo só os africanos conseguiram alcançar um grau tão alto de tecnologia.

Mas deixemos os detalhes do tempo.

Ninguém mais quer saber de história nos dias de hoje.

O fato é que a coisa bebia seu óleo e sorria mostrando dentes podres e implantes de lítio.

- Eu fodi uns tantos.

Um casal de lesmas se pegava num canto do bar.

Os presentes não se importavam. Transar era comum em lugares públicos e ninguém ligava para lesmas. Tudo bem se elas não começassem a fazer barulho ou querer forçar alguma barra com alguém pouco disposto.

- Fodeu, sim. Eu vi. Era uma pilha de uns quatro metros de altura!

Quem disse isso foi uma iputa velha de cara engessada pelas sucessivas aplicações de hidrox.

- Cala a boca, múmia!

- Vem calar, seu brocha.

Ainda não era alta madrugada e os brigadianos não haviam chegado para fechar o comércio ilegal de Nova Desterro.

Em breve isto ocorreria.

De fato, os soldados não viam a hora de se divertir um pouco com aqueles novos teasers que a Empresa importou de Taiwan.

- Nós demos cabo deles. Botei fogo nuns tantos.

A coisa arrotou, deu mais um gole na caneca de alumínio imunda e coçou a barriga.

Ao longe, os vagabundos na esquina já ouviam as primeiras sirenes e os zunidos dos teasers.


- - -


Quando G-G acordou pensou que havia algo lá fora sufocando no próprio vômito. Possivelmente um drog em convulsão ou, o que era bem menos provável, um cachorro.

El, contudo, logo conscienciou:

- Sou eu. É dentro de mim.

E era mesmo. Parecia algo querendo sair do seu estômago. G-G logo pensou em velhos movies de ficção científica. Nem cogitou câncer ou pluroma.

El era 68% humano. O resto era plástico e “gelatina”. Gelatina era como os civis chamavam o composto sintético que substituía os tecidos biológicos comprometidos. G-G achava mais barato substituir peças do que tentar consertar numa casa de bio qualquer.

Seu estômago, contudo, ainda era de carne.

Tem algo dentro de mim, pensou.

E a coisa roncava cada vez mais alto. Como se tentasse articular uma palavra.

Não havia dor. El atirou para fora da cama o manto de algodão cru. Olhou pela janela e viu que ainda era noite.

Um dron cruzou o horizonte fazendo o seu zunido peculiar.

Tem algo dentro de mim.

El suava frio e contorcia-se tentando calar aquela coisa.

Tem algo dentro de mim.

Sentiu uma pressão no abdômen nu e magro.

Não havia dor, mas uma sensação de enorme vazio. Um vazio tão grande que não poderia ser preenchido com nenhuma outra coisa se não pilhas zinco. Zinco do bom. Puro e pesado.

Era 3 da manhã quando G-G vestiu seu casaco, pôs suas botas, calibrou o renderizador, apertou o botão térreo da torre e chegou ao solo.

O cheiro de lixo lhe causou náusea e a coisa dentro dele parecia que queria pronunciar algo.

Talvez a entidade dentro do seu estômago estivesse tentando simplesmente lhe dizer “pilhas de zinco”.

O primeiro transeunte com quem topasse provavelmente voltaria para casa sem um dos seus implantes.

G-G não podia evitar o impulso quando ficava assim.

Precisava ingerir algumas pilhas.


Pilhas frescas. Faiscantes.


- - -


Quando os brigadianos chegaram com os teasers, o bar do Andros já estava fechando as grades de segurança.

G-G passou por dois deles e viu seus emblemas piscando.

Eram da tropa de pacificação. Eles tinham armas que G-G não saberia nem pronunciar os nomes. Viu, contudo, que os bons e velhos teasers estavam todos em riste e carregados em potência letal. Melhor baixar a cabeça e cruzar rápido a rua.

Dois brigadianos olharam G-G fixamente tentando captar as suas intenções.

A coisa dentro dele, nesse instante, apenas balbuciou.

“Fome”.

Passou reto pela frente do bar.

Cruzou a esquina à esquerda. Olhou para os lados para verificar se não havia mais nada na rua e escapou para dentro da escuridão de uma viela.

Havia uma porta.

Era ali que G-G sempre ia quando tinha problemas.

El apertou o fone e, do outro lado, uma voz meio rouca e cansada atendeu.

Era Andros.

- O que tu queres. Acabei de fechar a entrada. Não quero ninguém incinerado aqui hoje.

- Andros, disse G-G, eu preciso de um pouco de eletro. Tenho créditos. E mostrou o pulso.

- Quanto você tem aí?

- Cinco mil e oitocentos.

Andros riu com sua boca podre e salpicada de lítio.

- Entra logo.

Ouviu-se o som de um ferrolho sendo arrastado e a porta abrir-se. G-G a cruzou rapidamente já antevendo o prazer incomparável de receber no lóbulo uma boa descarga de pilhas.


- - -


- Não gosto de receber gente em crise aqui depois dos brigadianos fazerem a limpa pelo Centro.

- Eu sei. Mas preciso de uma dose.

Andros abriu a caixa onde guardava as pilhas. Havia de tudo ali. Zinco enriquecido, Carbono 359, ampolas de speed...

- As pilhas são novas. Não compro recauchutadas. Também não extraio nada de gente morta. Só trabalho com material de primeira.

- Eu sei.

- Então tu sabes que 5800 não paga nem o transporte, né?

- Andros, eu preciso...

- E eu também preciso viver. Tu só tens isso aí de crédito?

- Só.

Andros olhou para a caixa. Havia 3 cápsulas. Faria um pequeno abatimento para G-G. Por alguma razão gostava de el.

- Toma.

E estendeu a mão segurando uma das cápsulas.

- É isso o que tenho pra ti hoje. Faço por 5800 mesmo.

G-G fez menção de agarrar a cápsula. Andros fechou a mão.

- Primeiro a transferência.

- Certo, certo.

G-G levantou o braço e arregaçou as mangas do casaco. Andros passou a máquina de créditos por sobre o ponto de implante e imediatamente recebeu seu comprovamente de depósito. Na seqüência voltou a abrir a mão. A pilha de zinco estava ali. Prateada. Faiscante. Linda. Linda.

Dentro de el a coisa recomeçava a manifestar-se, mas agora era apenas um ronronar suave.

Quando G-G engoliu a cápsula e sentiu a primeira descarga pensou que nada poderia se comparar a isto. Nem proteína animal, nem água fluorificada, nem sexo analógico, nada. Absolutamente nada. Era como se cada célula ou circuito dentro do seu corpo resetassem e voltassem com tudo. Vapor total.

O vazio foi embora e a coisa dentro de el silenciou por completo.

- Obrigado, Andros. Você é um pai pra mim.

- Se manda, logo. Isso aqui não é albergue.

Já era quase de manhã quando G-G pôde finalmente recolher sua manta de algodão encardida e descansar.

Lá fora o sol queimava inclemente e a multidão já se aglomerava nas ruas.

Dentro do seu cubículo, G-G dormia como se o seu sono fosse a própria morte.


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terça-feira, 29 de abril de 2025

19. A JUSTIÇA DOS CÃES

 



A JUSTIÇA DOS CÃES


Não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem as famílias.”
(Margaret Thatcher, entrevista à revista Woman’s Own, 1987)


"Nessa condição, não há lugar para a indústria; porque o fruto dela é incerto; e, consequentemente, não há cultura da terra; nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas por mar; nem construções espaçosas; nem instrumentos para mover e remover coisas que requerem muita força; nem conhecimento da face da terra; nem conta do tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e o que é pior de tudo, medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, desagradável, brutal e curta."

(Thomas Hobbes, Leviatã, Capítulo XIII, 1651)


Os cachorro não comio fazia uns três dias já. Então, se algum deles conseguisse alcançá qualquer um dos vagabundo, não sobrava nem osso.

Digo isso porque eu já vi isso acontecê uma vez. Um dia uns maconheiro entraro aqui no meu bar. Era dois cara e uma guria.

Eles querio água, eles.

Eu disse que água só tinha da torneira. Aí eu dei o preço.

A mulher ficou braba comigo. Os cara também. Então eu falei que aquele era o meu bar e que eu cobrava o preço que eu quisesse pela minha mercadoria. Então, se o preço da água era um boquete, era esse o preço que eu ia cobrá.

Aí a mulher me mandou tomá no cu.

Todo mundo aqui na comunidade me conhece. Eu nasci e fui criado aqui. Graças a deus fui bem educado. Meu pai me ensinou a ser um homem direito. Não devo nada a ninguém. Nunca chamei a vigilância pra ninguém que não merecesse. Então eu acho que eu tava no meu direito.

Não disse nada demais na hora. Só falei que aquela água era boa e valia o preço. Não era de esgoto, não tinha sujeira nenhuma e que nem aqui e muito menos na cidade eles iam encontrar água melhó. Falei só a verdade, eu.

Aí, eles viraro as costa e me deixaro falando sozinho.

Era verão na época e o dia tava quente mesmo.

Eles parecio tá na estrada fazia já muito tempo já. Tava todo mundo muito magro. Todo mundo sujo. Uma imundície.

Aí eu gritei: Vocês tão fudido. Eu vou chamar a vigilância pra vocês, seus comunista!

Um dos cara, um neguinho, levantou o dedo do meio e me chamou de fascista.

Aí eu não agüentei.

Não gosto de esculhambação, tu sabes.

Peguei o telefone e mandei mensagem pro comando central. Disse que tinha três terrorista aqui no bairro e que eles parecio tudo drogado.

Sim, porque eles tavo tudo drogado.

Eu vi o olho deles.

Sabe quando a pessoa fuma maconha e fica com o olho vermelho?

Eles tavo tudo assim.

Tudo de olho vermelho.


Aí não demorou nem cinco minutos e já chegou dois segurança numa picape.

Uma caminhonetona grandona. Cinza. Bonita a caminhonete deles.

Um dos segurança eu conhecia da igreja. O outro acho que era PM aposentado. Tinha jeito de PM. Era um fortão, careca, com uma .40 na cintura.

Arma boa a .40. Faz um buracão assim, ó.

Mas aí, então, os dois viero já com quatro pitbull branco amarrado pela coleira.

Cada um vinha segurando dois.

Os cachorro tavo preso numas corrente grossa e de focinheira.

Tu sabes que esses bicho apanho desde filhote, né? Então a única coisa que eles sabe fazê é recebê ordem, corrê atrás de vagabundo e mordê pra matá. Não tem cachorro melhor pra fazê segurança do que o pitbull.

Pitbull é o melhó cachorro que tem.

Então eu contei pros dois vigia tudo certinho o que tinha acontecido.

Expliquei que eu tava aqui no meu serviço e que três vagabundo aparecero querendo água.Eu ofereci o produto e eles me agrediro. Dei a descrição dos três. Falei que a mulher provavelmente era puta e que todo mundo tinha cara de esquerdista.

Maconheiro e esquerdista.

Aí pronto. Os dois já viraro as costa e sairo na perseguição.

Não sei quanto tempo demorô. Acho que nem dez minuto. É... Uns dez, quinze minuto...

Não!

Uns vinte.

Vinte minuto.

Eu tava aqui preparando o sopão do dia pra vendê no almoço e um dos segurança voltou.

Tava com a camisa toda respingada de sangue.

Disse que eles tinham encontrado os três numa trilha aqui perto e que eles tinham soltado os cachorro pra corrê atrás deles.

Fiquei contente porque era isso que eles merecio mesmo.

Mas aí o cara disse que era pra eu ir lá ver se era eles mesmo e reconhecê os marginal.

Então eu fui lá.

Do neguinho não tinha sobrado quase nada do rosto. Um dos cachorro ainda tava roendo parte da bochecha, inclusive. Mas eu reconheci o safado pela cor e pela bermuda.

O outro ainda deu pra ver bem quem era. Os bicho tinho comido só a parte de baixo do corpo. As perna mesmo já tavo as duas só no osso. Uma sangueira desgraçada.


Agora, a mulher foi feio.

Tinha dois bichão em cima dela quando eu me aproximei. Um tava com o focinho enterrado na garganta e com as pata bem em cima dos peitinho. Parecia que tava tentando arrancar a cabeça da vagabunda.

Um cachorro já tinha arrancado uma das perna da moça.

Ao redor a criançada ficavo tudo pulando, gritando, fazendo festa. Tinha tempo já que eles não vio a cachorrada comê.

Aí, o carecão com cara de PM me perguntou se era eles mesmo.

Eu disse que sim e daí eles me liberaram.

Só depois é eu fiquei sabendo direitinho como é que os três tinho sido pegado.

Diz que quando os vagabundo sairo aqui do bar eles já correro direto pro mato porque sabio que eu ia denunciá eles mesmo. Então foram pela trilha, não pela estrada.

Quando os cachorro encontraro os terrorista, provavelmente guiado pelo faro e pelo cheiro de maconha, os pitbull já tavo sem a focinheira e pronto pra atacá.

Nem deu tempo pra ninguém subir nas árvore ou tentá enganá os bichos com pedaço de pão ou farelo de bolacha que nem essa cambada costuma fazê.

Os pitbull da vigilância são uns bicho bom. Já chego estraçalhando.

Diz que eles fico vários dia sem comer pra poder render melhor.

Esses tavo há três dias, parece.

Quem me disse isso depois foi o outro segurança. O rapazinho que eu conheço lá da igreja. Um menino bom, ele.

Ele me disse que a mulher foi a última a morrê.

Morreu xingando o Presidente, ele me disse.

Bem feito.

Teve o que mereceu, aquela puta.

Deus que me perdoe, mas teve sim.


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segunda-feira, 28 de abril de 2025

18. MANECO VIEIRA

 



MANECO VIEIRA


A Rodovia Aparício Cordeiro é uma estrada que leva do Campeche ao bairro da Tapera.

- Com licença, divindades, seres da natureza, posso entrar?

A Tapera é um bairro da periferia de Florianópolis.

-… Muito obrigado, Pachamama.

Uma das características da paisagem urbana da Ilha é o amálgama entre natureza e cidade, campo e asfalto.

- Deixai-me adentrar o vosso território, com todo o respeito...?

A Rodovia Aparício Cordeiro é margeada por pequenos campos de criação de cavalos...

- Ah, não!

… e bois.

- Hum!?

- Otro doido!

- O quê...!?

- Que foi rapaigi?

- Caralho! Que merda é essa!?

- Olhó! Ficasse branco que é uma cera!

- Tu falas?

- Não, não falo!

- Tu és um boi falante!? É pegadinha? Que palhaçada é essa?

- Não adianta procurar ninguém não, ô seu tanso. Sou eu mesmo que tô aqui, falando contigo.

- Tu és um boi mesmo?

- Sou um boitatá, não tás vendo?

- Um boitatá?

- É. Num conheces boitatá? Num és daqui, tu?

- Não. Sou de Porto.

- Ah! Outro gaúcho!

- O que é um boitatá?

- Num tem boitatá lá no Rio Grande do Sul, não? Os gaúcho num conhece boitatá?

- Eu... Eu... É.... eu não sei.

- Já visse um rastro de fogo no meio do mato à noite, por acaso? Que nem uma cobra de luz?

- Eu... na realidade... já.

- Então. Era um boitatá!

- Eu pensei que fosse fogo-fátuo. Quer dizer, na hora eu pensei que pudesse ser alguma coisa de outro planeta, tals... Mas, enfim... É que eu nunca pensei que pudesse ser um tipo de boi.

- Um tipo de boi não. Um boitatá.

- É. Isso. Um boitatá.

- Pois agora...

- Mas tu pareces um boi comum, na verdade. Um boi muito velho, mas comum. Tem certeza que isso não é uma pegadinha?

- Ah! vai te caga, guri! Pegadinha! Ahn, ahn... parece que não reza.

- ...

- Eu tô assim magro e acabado porque tô esquecido. Mas na hora que se lembrarem de mim, eu fico forte de novo. Gordo, bonito...

- Ninguém vem cuidar de ti?

- Pior! Ninguém lembra de mim!

- Hi, guys!

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno.

- Caralho, mano! Que é esso!?

É um fungo que “dá barato”.

- É um elemental, ô estepô! Nunca visse um elemental também?

Podemos destacar cinco habitats diferentes para os cogumelos Psilocybe cubensis:

- Um o quê!?

Jardins.

- Cuidado aí, ô seu songamonga! Vais pisar no bichinho.

Florestas.

- Ah, desculpa! Foi mal.

Banhados.

- Agora tu vais me dizer que nunca visses um elemental na vida? Não conheces saci, tu?

Depósitos de esterco.

- Nice to meet you, I'm Grimble Gromble. I came from England.

Pastagens.

- Ele é um gnomo?

Pastagens com bastante esterco fornecem um ambiente perfeito para os cogumelos coprófilos.

- Não tás vendo, ô esperto?

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno e coprófilo.

- Do you speak English? Hablas español?

Psilocybe cubensis são fungos que dão barato e que comem merda.

- Tem gnomo aqui?

Merda de vaca.

- Ô! é o que mais tem!

Merda de boi.

- ¿Estás bien, amigo? Tudo certinho com você? Are you okay?

- O que que ele tá fazendo aqui?

- Ah, o que tu acha? Tá morando aqui né, ô seu banzo!

- Aqui onde?

- Onde!? No pastinho! No meu pastinho!

- Tem um gnomo morando aqui no pasto?

- Um não! Tem uma penca! É força de gnomo que tem aqui no meu pasto agora!

- Báh, que locura!

- Poca da vergonha, isso sim! Uns mandrião, uns encostado...

- What is "mandrião"?

- Esse aí mesmo é o dia todo só com esse cachimbo na boca. É um fedor que ninguém aguenta.

- Tá, mas o que esses gnomos vieram fazer aqui?

- O quê!? O mesmo que tu! Pertubar!

- Do you smoke?

- Tá, mas eu não entendi ainda.

- És bem tolo tu. Vô te explica, então...

- Hum.

- É os de fora que traze. Antes isso aqui era uma paz, uma paz. Ai começou os turista. Primeiro era só na praia. Depois se espalhou. Gente de tudo que é lugar. Gaúcho, paulista, paranaense... Aí, acabo que de uns tempo, veio os estrangeiro. Primeiro, os argentino, os uruguaio, depois os outro. Esse aí veio com um gringo que mora ali no Campeche.

- Well, I'll be going now. Bye guys. Buenos dias a los dos. Tchau!

- Ó, lá vai ele fuçar na bosta de novo.

- É... e tu? Vives aqui há muito tempo?

- Eu!? Rapaigi, a minha família era dona desses campo tudo aqui. Antigamente, quando eu era rapazote, corria por esses mato que meu deus do céu. Coisa linda! Eu e os meus irmão. Direto, direto. Era eu, o Deco, o Zé da Maria, o Lino...

- Tinha mais!? Os outros também eram boitatás?

- Tudo boitatá legítimo! Tudo daqui. Nascido e criado na Tapera.


- E onde eles estão agora?

- Ah! Agora tá quase tudo sumido. O Deco eu não vejo desde a construção da Ponte do Dotô Hercílio. O Zé da Maria eu perdi de vista. O Lino, coitado, desapareceu depois que o avô do rapazinho que cuidava aqui do pasto morreu.

- Bois tem nome?

- Os boitatá tem.

- Tens nome também?

- Não, não tenho!

- Não tens?

- Claro, ô boca-mole!

- Qual?

- Maneco Viera, ao seu dispôr. Filho da Dona Dica e do Seu Zinho do Engenho.

- …

- Que quê foi? Perdesse a língua? Ficasse abobado?

Segundo a Wikipédia...

- É que... eu não sei... será que eu tô bem? É que eu...

… as experiências com cubensis costumam ser extremamente construtivas para o usuário que as experimenta, porém...

- Ô seu coisa ruim,tavas mexendo na bosta também num tavas?

...porém,...

- É... Eu...

...porém,...

- Na verdade eu...

...porém,...

... eu tava sim.

...porém...

- Ah, pronto!

… não são raros os casos de ''bad-trips''.

- É... Eu acho que preciso dar um tempo.

E em altas dosagens, o usuário tende a perder o contato com o mundo exterior.

- Claro que precisas!

Ele acaba chapando demais.

- Tá. Falou.Vou lá comer um chocolate...

- Vai, vai! Vai-te embora!




"ANTROPOCENO POBRE" (Link para o livro completo)

  "ANTROPOCENO POBRE", de Luiz Souza (Link de acesso livre para o livro completo) - Arte original da capa do livro "Antropoce...