terça-feira, 4 de julho de 2023

ELOGIO AO POETA

 



Neste último sábado, o músico e escritor carioca Rogério Skylab fez dois shows, em sequência, numa mesma noite, no Célula Showcase, aqui em Florianópolis. Foi a primeira vez que Skylab se apresentou nesta capital. Eu e Paulo Andrés (o Amaweks) estivemos lá, como artistas, fazendo a nossa panfletagem divulgando o "Manifesto da Arte Anacrônica". Mas também nos fizemos presentes como público e, sobretudo, como críticos e observadores culturais. Isto porque sabíamos que o que ocorreria naquela noite seria um acontecimento  dos mais relevantes para a cena alternativa da cidade. Skylab, hoje, não é apenas um dos mais ousados e criativos artistas brasileiros em atividade, ele é a principal referência para toda uma nova geração contracultural. Está, para o Brasil de 2023, assim como  Caetano Veloso, Tom Zé, Sérgio Sampaio, Rita Lee, Jards Macalé, Walter Franco e tantos outros e outras estiveram para o Brasil de outros tempos. O que vimos, ouvimos e experimentamos lá, neste fim de semana, tanto no nosso contato com os fãs do músico quanto no próprio show em si, comprovou nossas expectativas e avaliações prévias.

Nosso interesse pela obra de Skylab vem de longe. De fato, da primeira vez que assisti à uma performance de Rogério Skylab, eu tinha 13 anos de idade. Estávamos em 1994 e o programa "Jô Soares Onze e Meia" era, então, uma das melhores coisas disponível na TV aberta. Jô havia estreado o seu programa em 1988, no SBT, com ampla liberdade criativa assegurada por um Sílvio Santos ansioso por tomá-lo da lista de contratados da sua principal concorrente, a Rede Globo. A confiança no faro de Jô e da sua equipe de produção para encontrar boas histórias e personagens acabou proporcionando  o contato do público médio com algumas personalidades culturais e históricas que, de outro modo, dificilmente teríamos conhecido por aqui. Praticamente não havia internet. Não havia redes sociais. O que nos chegava da produção cultural alternativa realizada nos principais centros metropolitanos, via rádio ou TV, ainda era relativamente escassa e geralmente mal apresentada pelos grandes meios.

Skylab no programa "Jô Soares Onze e Meia", em 1994.


Skylab estava à época ainda no seu primeiro disco, o álbum "Fora da Grei", lançado em 1992, mas naquela altura já havia composto algumas das músicas que marcariam posteriormente a sua carreira. Naquela ocasião, após uma entrevista em todos os sentidos insólita, Rogério aprensentou em rede nacional canções como "Matador de passarinho", "Urubú" e "Motosserra". A julgar pelo que a câmera mostrava, pouca gente parecia  estar entendendo algo daquela proposta. Aquele então ainda jovem compositor fazia poemas de inspiração simbolista e parnasiana, mas com conteúdo punk rock e gore. Ao mesmo tempo, articulava referências filosóficas sofisticadas com uma linguagem que oscilava entre o pornográfico e o simplesmente delirante. Sua performance, por sua vez, era agressiva e patética ao mesmo tempo. Ele cantava sobre flores e esquartejamento enquanto bradava uma faca de cozinha no ar. Por falta de reação mais adequada, o público do auditório de Jô Soares só conseguia rir nervosamente. Desde a minha casa, eu também não entendia bem o que via, mas não conseguia rir. Pelo contrário, observava em silêncio e com atenção. Eu já intuia que ali havia algo que ia muito além da simples piada de humor negro, do mero entretenimento. Skylab era um dos artistas mais autênticos que eu já havia visto até então e, muito rapidamente, tornou-se um dos meus heróis culturais de adolescência. Ele era alguém que ostentava o tipo de coragem intelectual e criativa que, um dia, eu gostaria de ter.

Apesar do sucesso daquela entrevista concedida ao Jô, durante muito tempo Skylab ainda permaneceu sendo tratado pela grande mídia e pelos estabelecidos da música popular brasileira como uma figura folclórica. Uma excentricidade de talk show de fim de noite. O próprio Jô Soares, apesar da simpatia que nutria pelo seu entrevistado, parecia ter alguma dificuldade de levar totalmente a sério a proposta estética radical de Skylab. No transcorrer dos anos suas participações nos programas do Jô foram se acumulando. Mais de dez entrevistas ao longo das décadas. E eu o acompanhei durante todo esse tempo e continuei prestando atenção a cada um dos seus movimentos.

Eu não era o único. Havia todo um segmento da juventude brasileira que ia descobrindo o artista e, aos poucos, compreendendo a sua música, a sua lírica e a sua poética. Veio então o novo milênio, ultrapassamos os anos 2000 e chegamos à decisiva década de 2010, a mesma que, na comunicação, viu o declínio dos talk shows ao estilo "Programa do Jô", a ascenção das redes sociais e, politicamente,  assistiu a ofensiva neofascista no Brasil. Este último elemento foi crucial para a carreira de Skylab.

Paradoxalmente, a partir do golpe de 2016, surgiriam as condições ideais para o florescimento de um novo público para Rogério Skylab. Aos poucos, o que nos anos 1990 era percebido como música e poesia de gosto duvidoso começou a ganhar outro status em meio à fascistização da cultura e sociedade brasileira. A atitude estética e ideologicamente  provocadora de Skylab começou a ganhar cada vez mais resonancia junto a uma nova juventude política e culturalmente inconformista. O que antes poderia parecer piada politicamente descopromissada, agora, com a ascenção do bolsonarismo, soava a muitos como um tipo de resposta mais do que lúcida e pertinente dentro do nosso campo cultural contra o horror promovido pela extre-direita. Diante da proliferação de tantos Olavos de Carvalhos e Damares Alves, o Brasil precisava urgentemente de mais Rogérios Skylabs.

Skylab, como sempre, parecia compreender exatamente qual o papel estava lhe sendo reservado como artista dentro do novo contexto histórico que se formava. E ele respondeu à altura. Continuou fazendo música transgressora, mas cada vez mais sofisticada e em diálogo íntimo e crítico com os mais diversos setores do rock e música popular brasileira. Tornou-se ele próprio um comunicador. Aprofundou seu trabalho como crítico cultural. Apresentou-se, quando necessário, como analista político e pensador público comprometido com pautas progressistas. Não fez concessões oportunistas. Manteve-se coerente. Cresceu como artista, intelectual e cidadão. Envelheceu infinitamente melhor do que a maioria dos bem pensantes que, em 1994, riam dele e não faziam muito esforço para compreender o seu trabalho.

Skylab no palco do Célula Showcase, em Florianópolis.

Tendo tudo isto em mente, foi bonito e alentador ver o que vimos neste sábado, lá no Célula. Vimos jovens que nem eram nascidos em meados dos anos 1990 cantando a plenos pulmões cada verso de cada uma das suas músicas. Vimos um artista maduro, com mais de vinte discos gravados e no auge dos seus 66 anos, apresentando-se no palco com o vigor, energia e entusiasmo de um garoto. Vimos o músico Skylab cantando e sendo ouvido. Vimos o lírico Skylab recitando e sendo sentido. Vimos um dos nossos maiores artistas contemporâneos no ponto mais alto da sua carreira.


O público dividindo o palco com o artista: um dos momentos finais do show no Célula.

O show terminou às três horas da manhã. Na saída, rapazes e moças exaustos comentavam e concordavam entre si: "O Skylab é foda!". Sim, ele é. Sempre foi. E não é todo dia que vemos um poeta recebendo esse tipo de elogio no meio da rua.


Luiz Souza


ELOGIO AO POETA

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