terça-feira, 4 de julho de 2023

ELOGIO AO POETA

 



Neste último sábado, o músico e escritor carioca Rogério Skylab fez dois shows, em sequência, numa mesma noite, no Célula Showcase, aqui em Florianópolis. Foi a primeira vez que Skylab se apresentou nesta capital. Eu e Paulo Andrés (o Amaweks) estivemos lá, como artistas, fazendo a nossa panfletagem divulgando o "Manifesto da Arte Anacrônica". Mas também nos fizemos presentes como público e, sobretudo, como críticos e observadores culturais. Isto porque sabíamos que o que ocorreria naquela noite seria um acontecimento  dos mais relevantes para a cena alternativa da cidade. Skylab, hoje, não é apenas um dos mais ousados e criativos artistas brasileiros em atividade, ele é a principal referência para toda uma nova geração contracultural. Está, para o Brasil de 2023, assim como  Caetano Veloso, Tom Zé, Sérgio Sampaio, Rita Lee, Jards Macalé, Walter Franco e tantos outros e outras estiveram para o Brasil de outros tempos. O que vimos, ouvimos e experimentamos lá, neste fim de semana, tanto no nosso contato com os fãs do músico quanto no próprio show em si, comprovou nossas expectativas e avaliações prévias.

Nosso interesse pela obra de Skylab vem de longe. De fato, da primeira vez que assisti à uma performance de Rogério Skylab, eu tinha 13 anos de idade. Estávamos em 1994 e o programa "Jô Soares Onze e Meia" era, então, uma das melhores coisas disponível na TV aberta. Jô havia estreado o seu programa em 1988, no SBT, com ampla liberdade criativa assegurada por um Sílvio Santos ansioso por tomá-lo da lista de contratados da sua principal concorrente, a Rede Globo. A confiança no faro de Jô e da sua equipe de produção para encontrar boas histórias e personagens acabou proporcionando  o contato do público médio com algumas personalidades culturais e históricas que, de outro modo, dificilmente teríamos conhecido por aqui. Praticamente não havia internet. Não havia redes sociais. O que nos chegava da produção cultural alternativa realizada nos principais centros metropolitanos, via rádio ou TV, ainda era relativamente escassa e geralmente mal apresentada pelos grandes meios.

Skylab no programa "Jô Soares Onze e Meia", em 1994.


Skylab estava à época ainda no seu primeiro disco, o álbum "Fora da Grei", lançado em 1992, mas naquela altura já havia composto algumas das músicas que marcariam posteriormente a sua carreira. Naquela ocasião, após uma entrevista em todos os sentidos insólita, Rogério aprensentou em rede nacional canções como "Matador de passarinho", "Urubú" e "Motosserra". A julgar pelo que a câmera mostrava, pouca gente parecia  estar entendendo algo daquela proposta. Aquele então ainda jovem compositor fazia poemas de inspiração simbolista e parnasiana, mas com conteúdo punk rock e gore. Ao mesmo tempo, articulava referências filosóficas sofisticadas com uma linguagem que oscilava entre o pornográfico e o simplesmente delirante. Sua performance, por sua vez, era agressiva e patética ao mesmo tempo. Ele cantava sobre flores e esquartejamento enquanto bradava uma faca de cozinha no ar. Por falta de reação mais adequada, o público do auditório de Jô Soares só conseguia rir nervosamente. Desde a minha casa, eu também não entendia bem o que via, mas não conseguia rir. Pelo contrário, observava em silêncio e com atenção. Eu já intuia que ali havia algo que ia muito além da simples piada de humor negro, do mero entretenimento. Skylab era um dos artistas mais autênticos que eu já havia visto até então e, muito rapidamente, tornou-se um dos meus heróis culturais de adolescência. Ele era alguém que ostentava o tipo de coragem intelectual e criativa que, um dia, eu gostaria de ter.

Apesar do sucesso daquela entrevista concedida ao Jô, durante muito tempo Skylab ainda permaneceu sendo tratado pela grande mídia e pelos estabelecidos da música popular brasileira como uma figura folclórica. Uma excentricidade de talk show de fim de noite. O próprio Jô Soares, apesar da simpatia que nutria pelo seu entrevistado, parecia ter alguma dificuldade de levar totalmente a sério a proposta estética radical de Skylab. No transcorrer dos anos suas participações nos programas do Jô foram se acumulando. Mais de dez entrevistas ao longo das décadas. E eu o acompanhei durante todo esse tempo e continuei prestando atenção a cada um dos seus movimentos.

Eu não era o único. Havia todo um segmento da juventude brasileira que ia descobrindo o artista e, aos poucos, compreendendo a sua música, a sua lírica e a sua poética. Veio então o novo milênio, ultrapassamos os anos 2000 e chegamos à decisiva década de 2010, a mesma que, na comunicação, viu o declínio dos talk shows ao estilo "Programa do Jô", a ascenção das redes sociais e, politicamente,  assistiu a ofensiva neofascista no Brasil. Este último elemento foi crucial para a carreira de Skylab.

Paradoxalmente, a partir do golpe de 2016, surgiriam as condições ideais para o florescimento de um novo público para Rogério Skylab. Aos poucos, o que nos anos 1990 era percebido como música e poesia de gosto duvidoso começou a ganhar outro status em meio à fascistização da cultura e sociedade brasileira. A atitude estética e ideologicamente  provocadora de Skylab começou a ganhar cada vez mais resonancia junto a uma nova juventude política e culturalmente inconformista. O que antes poderia parecer piada politicamente descopromissada, agora, com a ascenção do bolsonarismo, soava a muitos como um tipo de resposta mais do que lúcida e pertinente dentro do nosso campo cultural contra o horror promovido pela extre-direita. Diante da proliferação de tantos Olavos de Carvalhos e Damares Alves, o Brasil precisava urgentemente de mais Rogérios Skylabs.

Skylab, como sempre, parecia compreender exatamente qual o papel estava lhe sendo reservado como artista dentro do novo contexto histórico que se formava. E ele respondeu à altura. Continuou fazendo música transgressora, mas cada vez mais sofisticada e em diálogo íntimo e crítico com os mais diversos setores do rock e música popular brasileira. Tornou-se ele próprio um comunicador. Aprofundou seu trabalho como crítico cultural. Apresentou-se, quando necessário, como analista político e pensador público comprometido com pautas progressistas. Não fez concessões oportunistas. Manteve-se coerente. Cresceu como artista, intelectual e cidadão. Envelheceu infinitamente melhor do que a maioria dos bem pensantes que, em 1994, riam dele e não faziam muito esforço para compreender o seu trabalho.

Skylab no palco do Célula Showcase, em Florianópolis.

Tendo tudo isto em mente, foi bonito e alentador ver o que vimos neste sábado, lá no Célula. Vimos jovens que nem eram nascidos em meados dos anos 1990 cantando a plenos pulmões cada verso de cada uma das suas músicas. Vimos um artista maduro, com mais de vinte discos gravados e no auge dos seus 66 anos, apresentando-se no palco com o vigor, energia e entusiasmo de um garoto. Vimos o músico Skylab cantando e sendo ouvido. Vimos o lírico Skylab recitando e sendo sentido. Vimos um dos nossos maiores artistas contemporâneos no ponto mais alto da sua carreira.


O público dividindo o palco com o artista: um dos momentos finais do show no Célula.

O show terminou às três horas da manhã. Na saída, rapazes e moças exaustos comentavam e concordavam entre si: "O Skylab é foda!". Sim, ele é. Sempre foi. E não é todo dia que vemos um poeta recebendo esse tipo de elogio no meio da rua.


Luiz Souza


domingo, 16 de abril de 2023

A FISSURA DE G-G

 



"Veja o futuro"




HEMÍSFÉRIO SUL DO PLANETA TERRA


SETOR OESTE DO TERRITÓRIO HIGIENIZADO


NOVA DESTERRO


46 ANOS APÓS O ÚLTIMO SURTO



- Não existem mais os de fora. Nós demos cabo deles. Eu mesmo empilhei uns tantos e queimei com gasolina. Tu já visse um negócio desses? É engraçado. 

A coisa gargalhou e deu mais um gole na caneca de alumínio. 

Havia uma luz azul muito fria que preenchia o escuro do ambiente. Era um monitor de 386 ligado 24h por dia mostrando os dados processados por um Intel-MegaCore Zeta. Não se produzia Intels com tamanha carga desde que o Atlântico subiu. Isso foi antes das fogueiras dos americanos, claro. Depois daquilo só os africanos conseguiram alcançar um grau tão alto de tecnologia. 

Mas deixemos os detalhes do tempo. 

Ninguém mais quer saber de história nos dias de hoje. 

O fato é que a coisa bebia seu óleo e sorria mostrando dentes podres e implantes de lítio. 

- Eu fodi uns tantos. 

Um casal de lesmas se pegava num canto do bar. 

Os presentes não se importavam. Transar era comum em lugares públicos e ninguém ligava para lesmas. Tudo bem se elas não começassem a fazer barulho ou querer forçar alguma barra com alguém pouco disposto. 

- Fodeu, sim. Eu vi. Era uma pilha de uns quatro metros de altura! 

Quem disse isso foi uma iputa velha de cara engessada pelas sucessivas aplicações de hidrox. 

- Cala a boca, múmia! 

- Vem calar, seu brocha. 

Ainda não era alta madrugada e os brigadianos não haviam chegado para fechar o comércio ilegal de Nova Desterro. 

Em breve isto ocorreria. 

De fato, os soldados não viam a hora de se divertir um pouco com aqueles novos teasers que a Empresa importou de Taiwan.

- Nós demos cabo deles. Botei fogo nuns tantos.

A coisa arrotou, deu mais um gole na caneca de alumínio imunda e coçou a barriga.

Ao longe, os vagabundos na esquina já ouviam as primeiras sirenes e os zunidos dos teasers. 


** *

Quando G-G acordou pensou que havia algo lá fora sufocando no próprio vômito. Possivelmente um drog em convulsão ou, o que era bem menos provável, um cachorro.

El, contudo, logo conscienciou:

 - Sou eu. É dentro de mim.

E era mesmo. Parecia algo querendo sair do seu estômago. G-G  logo pensou em velhos movies de ficção científica. Nem cogitou câncer ou pluroma.

El era 68% humano. O resto era plástico e “gelatina”. Gelatina era como os civis chamavam o composto sintético que substituía os tecidos biológicos comprometidos. G-G achava mais barato substituir peças do que tentar consertar numa casa de bio qualquer. 

Seu estômago, contudo, ainda era de carne.

Tem algo dentro de mim, pensou.

E a coisa roncava cada vez mais alto. Como se tentasse articular uma palavra.

Não havia dor. El atirou para fora da cama o manto de algodão cru. Olhou pela janela e viu que ainda era noite.

Um dron cruzou o horizonte fazendo o seu zunido peculiar. 

Tem algo dentro de mim.

El suava frio e contorcia-se tentando calar aquela coisa.

Tem algo dentro de mim.

Sentiu uma pressão no abdômen nu e magro.

Não havia dor, mas uma sensação de enorme vazio. Um vazio tão grande que não poderia ser preenchido com nenhuma outra coisa se não pilhas zinco. Zinco do bom. Puro e pesado.

Era 3 da manhã quando G-G vestiu seu casaco, pôs suas botas, calibrou o renderizador, apertou o botão térreo da torre e chegou ao solo.

O cheiro de lixo lhe causou náusea e a coisa dentro dele parecia que queria pronunciar algo.

Talvez a entidade dentro do seu estômago estivesse tentando simplesmente lhe dizer “pilhas de zinco”.

O primeiro transeunte com quem topasse provavelmente voltaria para casa sem um dos seus implantes.

G-G não podia evitar o impulso quando ficava assim.

Precisava ingerir algumas pilhas.

Pilhas frescas. Faiscantes.


* * *


Quando os brigadianos chegaram com os teasers, o bar do Andros já estava fechando as grades de segurança. 

G-G passou por dois deles e viu seus emblemas piscando.

Eram da tropa de pacificação. Eles tinham armas que G-G não saberia nem pronunciar os nomes. Viu, contudo, que os bons e velhos teasers estavam todos em riste e carregados em potência letal. Melhor baixar a cabeça e cruzar rápido a rua.

Dois brigadianos olharam G-G fixamente tentando captar as suas intenções.

A coisa dentro dele, nesse instante, apenas balbuciou.

“Fome”.

Passou reto pela frente do bar.

Cruzou a esquina à esquerda. Olhou para os lados para verificar se não havia mais nada na rua e escapou para dentro da escuridão de uma viela.

Havia uma porta.

Era ali que G-G sempre ia quando tinha problemas.

El apertou o fone e, do outro lado, uma voz meio rouca e cansada atendeu.

Era Andros.

- O que tu queres. Acabei de fechar a entrada. Não quero ninguém incinerado aqui hoje.

- Andros, disse G-G, eu preciso de um pouco de eletro. Tenho créditos. E mostrou o pulso. 

- Quanto você tem aí? 

- Cinco mil e oitocentos.

Andros riu com sua boca podre e salpicada de lítio.

- Entra logo.

Ouviu-se o som de um ferrolho sendo arrastado e a porta abrir-se. G-G a cruzou rapidamente já antevendo o prazer incomparável de receber no lóbulo uma boa descarga de pilhas.


* * *


- Não gosto de receber gente em crise aqui depois dos brigadianos fazerem a limpa pelo Centro.

- Eu sei. Mas preciso de uma dose.

Andros abriu a caixa onde guardava as pilhas. Havia de tudo ali. Zinco enriquecido, Carbono 359, ampolas de speed... 

- As pilhas são novas. Não compro recauchutadas. Também não extraio nada de gente morta.  Só trabalho com material de primeira.

- Eu sei.

- Então tu sabes que 5800 não paga nem o transporte, né?

- Andros, eu preciso...

- E eu também preciso viver. Tu só tens isso aí de crédito?

- Só.

Andros olhou para a caixa. Havia 3 cápsulas. Faria um pequeno abatimento para G-G. Por alguma razão gostava de el.

- Toma. 

E estendeu a mão segurando uma das cápsulas.

- É isso o que tenho pra ti hoje. Faço por 5800 mesmo.

G-G fez menção de agarrar a cápsula. Andros fechou a mão.

- Primeiro a transferência.

- Certo, certo.

G-G levantou o braço e arregaçou as mangas do casaco. Andros passou a máquina de créditos por sobre o ponto de implante e imediatamente recebeu seu comprovamente de depósito. Na seqüência voltou a abrir a mão. A pilha de zinco estava ali. Prateada. Faiscante. Linda. Linda.

Dentro de el a coisa recomeçava a manifestar-se, mas agora era apenas um ronronar suave.

Quando G-G engoliu a cápsula e sentiu a primeira descarga pensou que nada poderia se comparar a isto. Nem proteína animal, nem água fluorificada, nem sexo analógico, nada. Absolutamente nada. Era como se cada célula ou circuito dentro do seu corpo resetassem e voltassem com tudo. Vapor total.

O vazio foi embora e a coisa dentro de el silenciou por completo. 

- Obrigado, Andros. Você é um pai pra mim.

- Se manda, logo. Isso aqui não é albergue.

Já era quase de manhã quando G-G pôde finalmente recolher sua manta de algodão encardida e reconciliar o sono.

Lá fora o sol queimava inclemente e a multidão já se aglomerava nas ruas.

Dentro do seu cubículo, G-G dormia como se o seu sono fosse a própria morte.


Luiz Souza 


Florianópolis, Lagoa do Peri, 15 de abril de 2023.




 


quarta-feira, 13 de julho de 2022

MANIFESTO DA ARTE ANACRÔNICA


 

III

 

A nossa percepção dos tempos e os próprios tempos históricos em si estão sendo modificados e isto é um ato político com conseqüências éticas e estéticas.

 

IX

 

Uma teoria da arte que valha alguma coisa deve refletir o desenvolvimento histórico do seu objeto.

A anacronia descreve a arte atual porque dá a definição precisa das experiências sócio-culturais contemporâneas.

No caso do Brasil, como no caso de todas as margens, de todas as periferias, de todos os guetos, a anacronia, de fato, sempre fundamentou a nossa índole.

Desde a Primeira Missa pretendemos ser os fragmentos das civilizações que brancos europeus armados desembarcam em nossas baías.

Sempre a mesma defasagem de muitas modas em relação às metrópoles.

Sempre a mesma oferta de espelhinhos, contas de vidro e panos coloridos.

Desde Cabral é isso.

Desde o Ipiranga é isso.

Desde 1922 é isso.

De anacronia entendemos.

A anacronia é nossa!

A anacronia é verde-amarela como as cores das casas de Bragança e Habsburgo na bandeira da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil.

 

 

XII

 

Não há mais centro.

Não há mais periferia.

Tudo é beira.

Uma civilização global de fragmentos e despojos.

A favelização universal das culturas.

 

 

 

XIV

 

“Mas o que vem a ser ‘anacronia’?”, pergunta-se o transeunte.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que é o oráculo do nosso senso comum e bom pensamento, surge e sentencia:

Anacronia é o mesmo que retrógrado.

(Silêncio.)

...

Precisamos concordar sempre com o que diz algum Buarque de Holanda?

Não.

Concordamos com o Aurélio sobre anacronia?

Não.

Somos historiadores artistas e artistas historiadores.

Nossas matérias-primas são os vestígios das linguagens humanas nos tempos.

Nós sabemos, por ofício e experiência própria, que a anacronia não é o mesmo que reacionarismo, passadismo nostálgico ou fixação em representações acríticas e mitificadas do passado.

“César morto por um tiro de browning”; esta foi a fórmula de choque com a qual Lucien Febvre (ver WIKIPÉDIA) ilustrou a ideia de anacronia.

A anacronia é a invasão de uma época em outra, diz a literatura historiográfica.

É a mistura dos tempos.

Júlio César morto por um tiro de metralhadora em pleno 44 a.C.

Isto é anacronia.

 

 

X

 

David Bowie, um dos maiores estetas do século XX, considerava Adolf Hitler o primeiro rock star.

 

 

I

 

Ontem vi um vídeo na Internet 3.0.

Era um homem gravando a si mesmo enquanto bebia num só gole um copo inteiro de chorume fresco.

Ele queria likes.

Somos sobreviventes de um mundo pós-apocaliptico.

O pesadelo dos humanistas catastrofistas da primeira metade do século XX (Evgueny Zamiatin, Thea Von Harbou, Aldous Huxley, George Orwell...), depois transformado em ficção premonitória pelo cinema estadunidense (Robert Wise, Don Siegel, Stanley Kubrick, Franklin J. Schaffner, George Romero, John Carpenter...) e vendido como entretenimento familiar mundo afora, concretizou-se, pelas mãos da burguesia de Wall Street e associados, na atual paródia de todos os infernos já concebidos pelos poetas.

 A pandemia iniciada em 2019 é o último capítulo de um livro ruim cujo prólogo foi escrito em 1973, no Chile, com o sangue de Salvador Allende.

Todos os Chicago Boys, Augusto Pinochet, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, George W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush Jr., Barack Obama, Donald Trump, Joe Biden…, fantoches do complexo industrial-militar estadunidense e sistema financeiro internacional, numa orgia de brochas, conceberam o mundo que cagou a nossa geração (a descendência inepta dos chamados “baby boomers”).

E aqui estamos nós, os herdeiros atuais de uma montanha de lixo.

O chorume que escorre dela é anacrônico.

O resíduo líquido formado a partir da decomposição de matéria cultural presente no catálogo de importados dos grandes centros do capitalismo tardio e convulsionado.

O chorume que você também bebe.

O chorume que você está bebendo agora.

Spleen de deuses.

 

 

XIII

 

Ser contemporâneo é uma questão de classe. A pobreza nos obriga ao convívio com as diferentes temporalidades tecnológicas do lixão e com a arquitetura anacrônica dos barracos. Somos caçadores coletores que sonham os sonhos de bilionários que nos exploram enquanto lêem Isaac Asimov.

 

 

II

 

Você foi enganado, campeão.

Você foi enganada, florzinha de primavera.

Você não é especial.

Você não é o menininho da mamãe.

Você não é a princesinha do papai.

Você é a mão-de-obra barata e dispensável que, em breve, será substituída pelos seus filhos e filhas. Aquela gente sem futuro, sem passado e sem presente que você, devidamente programado pelos roteiristas de telenovelas e séries de streaming, irresponsavelmente pôs no mundo.

Um mundo que já é a distopia e será ainda mais conforme a avaliação de todos os que ainda ligam (ou ligavam) lé com cré (de Stephen Hawking, passando por István Mészáros, Immanuel Wallerstein, Naomi Klein, Noam Chomsky, entre outros e outras).

Falar com você, hommo absurdus, em termos um pouco mais elaborados do que os de um vídeo tutorial de um minuto é quase sempre perda de tempo.

Falar com você, peça descartável, em termos um pouco mais elaborados do que os de um meme é quase sempre perda de tempo.

Falar com você, ser desmemoriado, em termos um pouco mais elaborados do que os de uma sinopse de série animada é quase sempre perda de tempo.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não tem.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não é mais capaz de perceber.

Tempo.

Tempo.

Tempo

Tudo o que você não é mais capaz de elaborar.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não é mais capaz de refletir.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não é mais capaz de ponderar.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não é mais capaz de pensar.

Tempo.

Tempo.

Tempo.

Tudo o que você não é mais capaz de...

Quebrado em sua consciência histórica você regrediu aquilo que os colonizadores dos séculos de ouro do imperialismo insultariam como “bárbaro”.

Você é a mente selvagem a ser catequizada por trilhões de terabaites de poluição informacional.

O animalzinho a ser domesticado ou abatido.

A fibra óptica sucedeu a cruz e a espada no capitalismo tardio.

Será, pois, aos homens absurdos, aos novos bárbaros que a arte do século XXI necessariamente deverá falar.

 

 

V

 

O poder redistribui o bem comum e, na medida em que o faz, atua esteticamente.

As pautas de Davos.

As equações do M.I.T.

A agenda do Pentágono.

Tudo acaba numa instalação do MoMA, num reallity show ou num blockbuster de super-heróis.

 

XV

 

A questão, camarada, não é SE você vai morrer.

A questão, camarada, é COMO você vai morrer.

Você quer morrer como um cordeiro?

Você gostaria de ir ao abatedouro, assim, como um cordeiro?

 

 

VIII

 

O mash-up é o novo soneto.

 

IV

 

A tela, por meio da qual você provavelmente está lendo isto, custou à espécie humana alguns milhões de unidades.

Pelo menos...

- 2 guerras mundiais.

- 2 cidades japonesas.

- 1 Coréia.

- 1 Vietnã.

- Todas as ditaduras da América Latina.

- 2 Golfos.

- 1 Afeganistão.

- 1 Iraque

- 1 Síria.

- 1 Ucrânia em andamento.

- Todos os massacres, chacinas e genocídios brasileiros pelo menos desde 1964.

- E agora – ápice da História! – uma montanha de cadáveres descartados por uma pandemia de vírus letal.

Um mundaréu de gente triturada para que você tenha com o que preencher as suas horas inúteis e consumir com maior eficácia.

Tudo pela circulação do capital financeiro e pacificação social.

Você é um mico amestrado condicionado a dar likes.

Você sabe disso.

E importa?

Não. Por que importaria?

O cinismo tornou-se a sua segunda natureza.

A realidade, contudo, felizmente é contraditória.

Feche os olhos e imagine.

Feche os olhos e imagine Sergei Eisenstein.

Ou Glauber Rocha.

Ou Charles Chaplin.

Ou Leni Riefenstahl.

Nus e descalços.

Peles pretas e olhares brilhantes.

Meninos e meninas do tráfico P2P.

Imagine.

Georges Méliès com um smartphone vagabundo nas mãos.

Imagine.

 

 

VI

 

Quanto ao método partamos sempre do chão.

Da urgência do comer e do vestir.

Do fundamento lógico das coisas duras e materiais.

 

XI

 

Toda informação cultural produzida e preservada pela humanidade concentrada ao máximo num único e gigantesco banco de dados.

Toda a história da arte virtualmente acessível a qualquer capaz de digitar uma palavra num buscador on-line.

Uma civilização global concomitantemente central e periférica, provinciana e cosmopolita, atual e passadista, tradicional e moderna, revolucionária e reacionária.

Todos os tempos históricos e horizontes de futuro possíveis emergindo uns dos outros enquanto descemos as barras de rolagens dos nossos navegadores.

A cabeça do astrólogo de Raul Seixas em pleno surto esquizofrênico.

Olhe para fora da janela neste exato instante.

Vá e veja.

A obsolescência programada para o próximo segundo.

O contraste entre a chateza e esfericidade terrestre.

A estética Mad Max das carroças dos catadores de papelão.

As mensagens medievais estampadas nas camisetas da juventude.

A anacronia total.

 

VII

 

 “O anacronismo é uma práxis estética que visa atualizar a ideia de vanguardas artísticas e políticas para o contexto do século XXI.”, dirão as notas de rodapé dos manuais de história da arte.

Claro, isto sendo otimistas.

Talvez não haja futuro.

Talvez não haja história.

Talvez não haja arte.

Reivindicamos a anacronia para antropofagizar livremente não só no espaço, como o fizeram nossos pais pernambucanos, nossos avós baianos e nossos bisavós paulistas.

Somos cosplayers de Tarsilas, Pagus e Andrades e também queremos antropofagizar, mas NOS TEMPOS!

Estes tempos implodidos.

Estes tempos pulverizados pela atual fase do capitalismo.

Reivindicamos a anacronia em nome do Deus Tempo!

Reivindicamos a anacronia em nome de todos os deuses mortos!

Reinvidicamos a anacronia contra o Eterno Agora, o continuum que não nos deixa nem morrer, nem nascer, nem viver!

Eis o que somos:

Um videogame de madeira.

Dezenas de janelas reproduzindo simultaneamente vídeos numa cacofonia espaço-temporal.

Todos os tempos invadindo o presente.

Todos os tempos reinventando o passado.

Todos os tempos alterando os horizontes de futuro.

Temos mais recordações do que há em mil dias.

Temos mais recordações do que há em mil anos.

Temos mais recordações do que há em mil servidores.

Somos moços e, no entanto, velhos.

Somos velhos e, no entanto, contemporâneos.

A arte, que um dia chamarão “nossa” assim será porque já é ANACRÔNICA.



GANG DO LIXO

 

Ou os abaixo assinados:

 

 

Aurora Miotto Barbosa

 

Ana Paula Soukef

 

André Pereira

 

Enzo Gotardo

 

Fabiano Garcia

 

Jennifer N. Pereira

 

Judas Capiango

(Luiz Souza)

 

MARCELO MONSÓ

 

PAOLA MIOTTO

 

Paulo “AMAWEKS” Villalva

 

 

 

 

Matárius... Meiembipe-Vila de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina-Desterro-Florianópolis-Floripa... Nova Desterro-Matárius...

 

2 de julho de 2022.

 

Ano III da Pandemia.


ELOGIO AO POETA

  Neste último sábado, o músico e escritor carioca Rogério Skylab fez dois shows, em sequência, numa mesma noite, no Célula Showcase, aqui e...