quarta-feira, 30 de abril de 2025

20. A FISSURA DE G-G

 



PARTE IV:

TELA AZUL DA ESPÉCIE


20.

A FISSURA DE G-G


HEMÍSFÉRIO SUL DO PLANETA TERRA

SETOR OESTE DO TERRITÓRIO HIGIENIZADO

NOVA DESTERRO

46 ANOS APÓS O ÚLTIMO SURTO...


- Não existem mais os de fora. Nós demos cabo deles. Eu mesmo empilhei uns tantos e queimei com gasolina. Tu já visse um negócio desses? É engraçado.

A coisa gargalhou e deu mais um gole na caneca de alumínio.

Havia uma luz azul muito fria que preenchia o escuro do ambiente. Era um monitor de 386 ligado 24h por dia mostrando os dados processados por um Intel-MegaCore Zeta. Não se produzia Intels com tamanha carga desde que o Atlântico subiu. Isso foi antes das fogueiras dos americanos, claro. Depois daquilo só os africanos conseguiram alcançar um grau tão alto de tecnologia.

Mas deixemos os detalhes do tempo.

Ninguém mais quer saber de história nos dias de hoje.

O fato é que a coisa bebia seu óleo e sorria mostrando dentes podres e implantes de lítio.

- Eu fodi uns tantos.

Um casal de lesmas se pegava num canto do bar.

Os presentes não se importavam. Transar era comum em lugares públicos e ninguém ligava para lesmas. Tudo bem se elas não começassem a fazer barulho ou querer forçar alguma barra com alguém pouco disposto.

- Fodeu, sim. Eu vi. Era uma pilha de uns quatro metros de altura!

Quem disse isso foi uma iputa velha de cara engessada pelas sucessivas aplicações de hidrox.

- Cala a boca, múmia!

- Vem calar, seu brocha.

Ainda não era alta madrugada e os brigadianos não haviam chegado para fechar o comércio ilegal de Nova Desterro.

Em breve isto ocorreria.

De fato, os soldados não viam a hora de se divertir um pouco com aqueles novos teasers que a Empresa importou de Taiwan.

- Nós demos cabo deles. Botei fogo nuns tantos.

A coisa arrotou, deu mais um gole na caneca de alumínio imunda e coçou a barriga.

Ao longe, os vagabundos na esquina já ouviam as primeiras sirenes e os zunidos dos teasers.


- - -


Quando G-G acordou pensou que havia algo lá fora sufocando no próprio vômito. Possivelmente um drog em convulsão ou, o que era bem menos provável, um cachorro.

El, contudo, logo conscienciou:

- Sou eu. É dentro de mim.

E era mesmo. Parecia algo querendo sair do seu estômago. G-G logo pensou em velhos movies de ficção científica. Nem cogitou câncer ou pluroma.

El era 68% humano. O resto era plástico e “gelatina”. Gelatina era como os civis chamavam o composto sintético que substituía os tecidos biológicos comprometidos. G-G achava mais barato substituir peças do que tentar consertar numa casa de bio qualquer.

Seu estômago, contudo, ainda era de carne.

Tem algo dentro de mim, pensou.

E a coisa roncava cada vez mais alto. Como se tentasse articular uma palavra.

Não havia dor. El atirou para fora da cama o manto de algodão cru. Olhou pela janela e viu que ainda era noite.

Um dron cruzou o horizonte fazendo o seu zunido peculiar.

Tem algo dentro de mim.

El suava frio e contorcia-se tentando calar aquela coisa.

Tem algo dentro de mim.

Sentiu uma pressão no abdômen nu e magro.

Não havia dor, mas uma sensação de enorme vazio. Um vazio tão grande que não poderia ser preenchido com nenhuma outra coisa se não pilhas zinco. Zinco do bom. Puro e pesado.

Era 3 da manhã quando G-G vestiu seu casaco, pôs suas botas, calibrou o renderizador, apertou o botão térreo da torre e chegou ao solo.

O cheiro de lixo lhe causou náusea e a coisa dentro dele parecia que queria pronunciar algo.

Talvez a entidade dentro do seu estômago estivesse tentando simplesmente lhe dizer “pilhas de zinco”.

O primeiro transeunte com quem topasse provavelmente voltaria para casa sem um dos seus implantes.

G-G não podia evitar o impulso quando ficava assim.

Precisava ingerir algumas pilhas.


Pilhas frescas. Faiscantes.


- - -


Quando os brigadianos chegaram com os teasers, o bar do Andros já estava fechando as grades de segurança.

G-G passou por dois deles e viu seus emblemas piscando.

Eram da tropa de pacificação. Eles tinham armas que G-G não saberia nem pronunciar os nomes. Viu, contudo, que os bons e velhos teasers estavam todos em riste e carregados em potência letal. Melhor baixar a cabeça e cruzar rápido a rua.

Dois brigadianos olharam G-G fixamente tentando captar as suas intenções.

A coisa dentro dele, nesse instante, apenas balbuciou.

“Fome”.

Passou reto pela frente do bar.

Cruzou a esquina à esquerda. Olhou para os lados para verificar se não havia mais nada na rua e escapou para dentro da escuridão de uma viela.

Havia uma porta.

Era ali que G-G sempre ia quando tinha problemas.

El apertou o fone e, do outro lado, uma voz meio rouca e cansada atendeu.

Era Andros.

- O que tu queres. Acabei de fechar a entrada. Não quero ninguém incinerado aqui hoje.

- Andros, disse G-G, eu preciso de um pouco de eletro. Tenho créditos. E mostrou o pulso.

- Quanto você tem aí?

- Cinco mil e oitocentos.

Andros riu com sua boca podre e salpicada de lítio.

- Entra logo.

Ouviu-se o som de um ferrolho sendo arrastado e a porta abrir-se. G-G a cruzou rapidamente já antevendo o prazer incomparável de receber no lóbulo uma boa descarga de pilhas.


- - -


- Não gosto de receber gente em crise aqui depois dos brigadianos fazerem a limpa pelo Centro.

- Eu sei. Mas preciso de uma dose.

Andros abriu a caixa onde guardava as pilhas. Havia de tudo ali. Zinco enriquecido, Carbono 359, ampolas de speed...

- As pilhas são novas. Não compro recauchutadas. Também não extraio nada de gente morta. Só trabalho com material de primeira.

- Eu sei.

- Então tu sabes que 5800 não paga nem o transporte, né?

- Andros, eu preciso...

- E eu também preciso viver. Tu só tens isso aí de crédito?

- Só.

Andros olhou para a caixa. Havia 3 cápsulas. Faria um pequeno abatimento para G-G. Por alguma razão gostava de el.

- Toma.

E estendeu a mão segurando uma das cápsulas.

- É isso o que tenho pra ti hoje. Faço por 5800 mesmo.

G-G fez menção de agarrar a cápsula. Andros fechou a mão.

- Primeiro a transferência.

- Certo, certo.

G-G levantou o braço e arregaçou as mangas do casaco. Andros passou a máquina de créditos por sobre o ponto de implante e imediatamente recebeu seu comprovamente de depósito. Na seqüência voltou a abrir a mão. A pilha de zinco estava ali. Prateada. Faiscante. Linda. Linda.

Dentro de el a coisa recomeçava a manifestar-se, mas agora era apenas um ronronar suave.

Quando G-G engoliu a cápsula e sentiu a primeira descarga pensou que nada poderia se comparar a isto. Nem proteína animal, nem água fluorificada, nem sexo analógico, nada. Absolutamente nada. Era como se cada célula ou circuito dentro do seu corpo resetassem e voltassem com tudo. Vapor total.

O vazio foi embora e a coisa dentro de el silenciou por completo.

- Obrigado, Andros. Você é um pai pra mim.

- Se manda, logo. Isso aqui não é albergue.

Já era quase de manhã quando G-G pôde finalmente recolher sua manta de algodão encardida e descansar.

Lá fora o sol queimava inclemente e a multidão já se aglomerava nas ruas.

Dentro do seu cubículo, G-G dormia como se o seu sono fosse a própria morte.


⌘ ⌘ ⌘


terça-feira, 29 de abril de 2025

19. A JUSTIÇA DOS CÃES

 



A JUSTIÇA DOS CÃES


Não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem as famílias.”
(Margaret Thatcher, entrevista à revista Woman’s Own, 1987)


"Nessa condição, não há lugar para a indústria; porque o fruto dela é incerto; e, consequentemente, não há cultura da terra; nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas por mar; nem construções espaçosas; nem instrumentos para mover e remover coisas que requerem muita força; nem conhecimento da face da terra; nem conta do tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e o que é pior de tudo, medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, desagradável, brutal e curta."

(Thomas Hobbes, Leviatã, Capítulo XIII, 1651)


Os cachorro não comio fazia uns três dias já. Então, se algum deles conseguisse alcançá qualquer um dos vagabundo, não sobrava nem osso.

Digo isso porque eu já vi isso acontecê uma vez. Um dia uns maconheiro entraro aqui no meu bar. Era dois cara e uma guria.

Eles querio água, eles.

Eu disse que água só tinha da torneira. Aí eu dei o preço.

A mulher ficou braba comigo. Os cara também. Então eu falei que aquele era o meu bar e que eu cobrava o preço que eu quisesse pela minha mercadoria. Então, se o preço da água era um boquete, era esse o preço que eu ia cobrá.

Aí a mulher me mandou tomá no cu.

Todo mundo aqui na comunidade me conhece. Eu nasci e fui criado aqui. Graças a deus fui bem educado. Meu pai me ensinou a ser um homem direito. Não devo nada a ninguém. Nunca chamei a vigilância pra ninguém que não merecesse. Então eu acho que eu tava no meu direito.

Não disse nada demais na hora. Só falei que aquela água era boa e valia o preço. Não era de esgoto, não tinha sujeira nenhuma e que nem aqui e muito menos na cidade eles iam encontrar água melhó. Falei só a verdade, eu.

Aí, eles viraro as costa e me deixaro falando sozinho.

Era verão na época e o dia tava quente mesmo.

Eles parecio tá na estrada fazia já muito tempo já. Tava todo mundo muito magro. Todo mundo sujo. Uma imundície.

Aí eu gritei: Vocês tão fudido. Eu vou chamar a vigilância pra vocês, seus comunista!

Um dos cara, um neguinho, levantou o dedo do meio e me chamou de fascista.

Aí eu não agüentei.

Não gosto de esculhambação, tu sabes.

Peguei o telefone e mandei mensagem pro comando central. Disse que tinha três terrorista aqui no bairro e que eles parecio tudo drogado.

Sim, porque eles tavo tudo drogado.

Eu vi o olho deles.

Sabe quando a pessoa fuma maconha e fica com o olho vermelho?

Eles tavo tudo assim.

Tudo de olho vermelho.


Aí não demorou nem cinco minutos e já chegou dois segurança numa picape.

Uma caminhonetona grandona. Cinza. Bonita a caminhonete deles.

Um dos segurança eu conhecia da igreja. O outro acho que era PM aposentado. Tinha jeito de PM. Era um fortão, careca, com uma .40 na cintura.

Arma boa a .40. Faz um buracão assim, ó.

Mas aí, então, os dois viero já com quatro pitbull branco amarrado pela coleira.

Cada um vinha segurando dois.

Os cachorro tavo preso numas corrente grossa e de focinheira.

Tu sabes que esses bicho apanho desde filhote, né? Então a única coisa que eles sabe fazê é recebê ordem, corrê atrás de vagabundo e mordê pra matá. Não tem cachorro melhor pra fazê segurança do que o pitbull.

Pitbull é o melhó cachorro que tem.

Então eu contei pros dois vigia tudo certinho o que tinha acontecido.

Expliquei que eu tava aqui no meu serviço e que três vagabundo aparecero querendo água.Eu ofereci o produto e eles me agrediro. Dei a descrição dos três. Falei que a mulher provavelmente era puta e que todo mundo tinha cara de esquerdista.

Maconheiro e esquerdista.

Aí pronto. Os dois já viraro as costa e sairo na perseguição.

Não sei quanto tempo demorô. Acho que nem dez minuto. É... Uns dez, quinze minuto...

Não!

Uns vinte.

Vinte minuto.

Eu tava aqui preparando o sopão do dia pra vendê no almoço e um dos segurança voltou.

Tava com a camisa toda respingada de sangue.

Disse que eles tinham encontrado os três numa trilha aqui perto e que eles tinham soltado os cachorro pra corrê atrás deles.

Fiquei contente porque era isso que eles merecio mesmo.

Mas aí o cara disse que era pra eu ir lá ver se era eles mesmo e reconhecê os marginal.

Então eu fui lá.

Do neguinho não tinha sobrado quase nada do rosto. Um dos cachorro ainda tava roendo parte da bochecha, inclusive. Mas eu reconheci o safado pela cor e pela bermuda.

O outro ainda deu pra ver bem quem era. Os bicho tinho comido só a parte de baixo do corpo. As perna mesmo já tavo as duas só no osso. Uma sangueira desgraçada.


Agora, a mulher foi feio.

Tinha dois bichão em cima dela quando eu me aproximei. Um tava com o focinho enterrado na garganta e com as pata bem em cima dos peitinho. Parecia que tava tentando arrancar a cabeça da vagabunda.

Um cachorro já tinha arrancado uma das perna da moça.

Ao redor a criançada ficavo tudo pulando, gritando, fazendo festa. Tinha tempo já que eles não vio a cachorrada comê.

Aí, o carecão com cara de PM me perguntou se era eles mesmo.

Eu disse que sim e daí eles me liberaram.

Só depois é eu fiquei sabendo direitinho como é que os três tinho sido pegado.

Diz que quando os vagabundo sairo aqui do bar eles já correro direto pro mato porque sabio que eu ia denunciá eles mesmo. Então foram pela trilha, não pela estrada.

Quando os cachorro encontraro os terrorista, provavelmente guiado pelo faro e pelo cheiro de maconha, os pitbull já tavo sem a focinheira e pronto pra atacá.

Nem deu tempo pra ninguém subir nas árvore ou tentá enganá os bichos com pedaço de pão ou farelo de bolacha que nem essa cambada costuma fazê.

Os pitbull da vigilância são uns bicho bom. Já chego estraçalhando.

Diz que eles fico vários dia sem comer pra poder render melhor.

Esses tavo há três dias, parece.

Quem me disse isso depois foi o outro segurança. O rapazinho que eu conheço lá da igreja. Um menino bom, ele.

Ele me disse que a mulher foi a última a morrê.

Morreu xingando o Presidente, ele me disse.

Bem feito.

Teve o que mereceu, aquela puta.

Deus que me perdoe, mas teve sim.


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segunda-feira, 28 de abril de 2025

18. MANECO VIEIRA

 



MANECO VIEIRA


A Rodovia Aparício Cordeiro é uma estrada que leva do Campeche ao bairro da Tapera.

- Com licença, divindades, seres da natureza, posso entrar?

A Tapera é um bairro da periferia de Florianópolis.

-… Muito obrigado, Pachamama.

Uma das características da paisagem urbana da Ilha é o amálgama entre natureza e cidade, campo e asfalto.

- Deixai-me adentrar o vosso território, com todo o respeito...?

A Rodovia Aparício Cordeiro é margeada por pequenos campos de criação de cavalos...

- Ah, não!

… e bois.

- Hum!?

- Otro doido!

- O quê...!?

- Que foi rapaigi?

- Caralho! Que merda é essa!?

- Olhó! Ficasse branco que é uma cera!

- Tu falas?

- Não, não falo!

- Tu és um boi falante!? É pegadinha? Que palhaçada é essa?

- Não adianta procurar ninguém não, ô seu tanso. Sou eu mesmo que tô aqui, falando contigo.

- Tu és um boi mesmo?

- Sou um boitatá, não tás vendo?

- Um boitatá?

- É. Num conheces boitatá? Num és daqui, tu?

- Não. Sou de Porto.

- Ah! Outro gaúcho!

- O que é um boitatá?

- Num tem boitatá lá no Rio Grande do Sul, não? Os gaúcho num conhece boitatá?

- Eu... Eu... É.... eu não sei.

- Já visse um rastro de fogo no meio do mato à noite, por acaso? Que nem uma cobra de luz?

- Eu... na realidade... já.

- Então. Era um boitatá!

- Eu pensei que fosse fogo-fátuo. Quer dizer, na hora eu pensei que pudesse ser alguma coisa de outro planeta, tals... Mas, enfim... É que eu nunca pensei que pudesse ser um tipo de boi.

- Um tipo de boi não. Um boitatá.

- É. Isso. Um boitatá.

- Pois agora...

- Mas tu pareces um boi comum, na verdade. Um boi muito velho, mas comum. Tem certeza que isso não é uma pegadinha?

- Ah! vai te caga, guri! Pegadinha! Ahn, ahn... parece que não reza.

- ...

- Eu tô assim magro e acabado porque tô esquecido. Mas na hora que se lembrarem de mim, eu fico forte de novo. Gordo, bonito...

- Ninguém vem cuidar de ti?

- Pior! Ninguém lembra de mim!

- Hi, guys!

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno.

- Caralho, mano! Que é esso!?

É um fungo que “dá barato”.

- É um elemental, ô estepô! Nunca visse um elemental também?

Podemos destacar cinco habitats diferentes para os cogumelos Psilocybe cubensis:

- Um o quê!?

Jardins.

- Cuidado aí, ô seu songamonga! Vais pisar no bichinho.

Florestas.

- Ah, desculpa! Foi mal.

Banhados.

- Agora tu vais me dizer que nunca visses um elemental na vida? Não conheces saci, tu?

Depósitos de esterco.

- Nice to meet you, I'm Grimble Gromble. I came from England.

Pastagens.

- Ele é um gnomo?

Pastagens com bastante esterco fornecem um ambiente perfeito para os cogumelos coprófilos.

- Não tás vendo, ô esperto?

Psilocybe cubensis é um cogumelo enteógeno e coprófilo.

- Do you speak English? Hablas español?

Psilocybe cubensis são fungos que dão barato e que comem merda.

- Tem gnomo aqui?

Merda de vaca.

- Ô! é o que mais tem!

Merda de boi.

- ¿Estás bien, amigo? Tudo certinho com você? Are you okay?

- O que que ele tá fazendo aqui?

- Ah, o que tu acha? Tá morando aqui né, ô seu banzo!

- Aqui onde?

- Onde!? No pastinho! No meu pastinho!

- Tem um gnomo morando aqui no pasto?

- Um não! Tem uma penca! É força de gnomo que tem aqui no meu pasto agora!

- Báh, que locura!

- Poca da vergonha, isso sim! Uns mandrião, uns encostado...

- What is "mandrião"?

- Esse aí mesmo é o dia todo só com esse cachimbo na boca. É um fedor que ninguém aguenta.

- Tá, mas o que esses gnomos vieram fazer aqui?

- O quê!? O mesmo que tu! Pertubar!

- Do you smoke?

- Tá, mas eu não entendi ainda.

- És bem tolo tu. Vô te explica, então...

- Hum.

- É os de fora que traze. Antes isso aqui era uma paz, uma paz. Ai começou os turista. Primeiro era só na praia. Depois se espalhou. Gente de tudo que é lugar. Gaúcho, paulista, paranaense... Aí, acabo que de uns tempo, veio os estrangeiro. Primeiro, os argentino, os uruguaio, depois os outro. Esse aí veio com um gringo que mora ali no Campeche.

- Well, I'll be going now. Bye guys. Buenos dias a los dos. Tchau!

- Ó, lá vai ele fuçar na bosta de novo.

- É... e tu? Vives aqui há muito tempo?

- Eu!? Rapaigi, a minha família era dona desses campo tudo aqui. Antigamente, quando eu era rapazote, corria por esses mato que meu deus do céu. Coisa linda! Eu e os meus irmão. Direto, direto. Era eu, o Deco, o Zé da Maria, o Lino...

- Tinha mais!? Os outros também eram boitatás?

- Tudo boitatá legítimo! Tudo daqui. Nascido e criado na Tapera.


- E onde eles estão agora?

- Ah! Agora tá quase tudo sumido. O Deco eu não vejo desde a construção da Ponte do Dotô Hercílio. O Zé da Maria eu perdi de vista. O Lino, coitado, desapareceu depois que o avô do rapazinho que cuidava aqui do pasto morreu.

- Bois tem nome?

- Os boitatá tem.

- Tens nome também?

- Não, não tenho!

- Não tens?

- Claro, ô boca-mole!

- Qual?

- Maneco Viera, ao seu dispôr. Filho da Dona Dica e do Seu Zinho do Engenho.

- …

- Que quê foi? Perdesse a língua? Ficasse abobado?

Segundo a Wikipédia...

- É que... eu não sei... será que eu tô bem? É que eu...

… as experiências com cubensis costumam ser extremamente construtivas para o usuário que as experimenta, porém...

- Ô seu coisa ruim,tavas mexendo na bosta também num tavas?

...porém,...

- É... Eu...

...porém,...

- Na verdade eu...

...porém,...

... eu tava sim.

...porém...

- Ah, pronto!

… não são raros os casos de ''bad-trips''.

- É... Eu acho que preciso dar um tempo.

E em altas dosagens, o usuário tende a perder o contato com o mundo exterior.

- Claro que precisas!

Ele acaba chapando demais.

- Tá. Falou.Vou lá comer um chocolate...

- Vai, vai! Vai-te embora!




domingo, 27 de abril de 2025

17. O VIDENTE

 



O VIDENTE


Como vou morrer?, pergunta à bruxa.

A bruxa lê o destino do homem em dígitos de plástico retirados de algum teclado do início do século XXI. O primeiro lance, que é o mais aberto, indica as palavras “vim” e “rua”.

- Ele diz que não é coisa pessoal. Tua morte vai vim da rua. O que for não vai ter a ver com a tua família.

O segundo lance revela dois termos em inglês: “rec” e “few”. O que é isso, pergunta o homem.

- É “gravação” e... “menos”. Não, menos não, “algum”. Em inglês, “few” é algum.

A bruxa acende novamente a ponta de haxixe. Dá uma baforada. Prende. Solta.

- Alguma gravação. É isso o que diz.

- Humm. Entendi. O que mais?

A bruxa recolhe novamente os dígitos, chacoalha, fecha os olhos e atira sobre o tabuleiro de vime.

- E, Q, U, C... “que”... céu”.

- Que céu?

- Isso.

- Humm.

- Diz que tem a ver com as ideia. O que vai por cima da cabeça. É coisa de pensamento. Tu vai morrer por conta de alguma gravação que tu publicar. É isso o que voz do teclado me diz. A bruxa começou a recolher o material de trabalho.

- Tá certo. Quanto é?

- Três. Um por lance.

- Em crédito ou moeda.

- Moeda. Só trabalho com dinheiro físico.

- Toma. Pode ficar com o troco.

- Deus lhe abençoe.

O homem não responde. Levanta-se do banco dentro da barraca improvisada em pleno calçadão central de Nova Desterro. Faz frio e parece que vai chover novamente. Outra tempestade. Um café. Entrou. Duas mulheres conversam. A mais velha tosse muito. Ao avistarem o homem ambas recolocam suas máscaras Sílex P-98.

- Bom dia, o que vai ser?

- O que tem?

- Álcool e água de torneira.

- Álcool, por favor.

- Pra consumir aqui ou pra levar.

- Consumir aqui.

- Pra consumir álcool aqui dentro é mais caro.

- Me dá água, então.

A mulher olha-o com desprezo. Bebe a água salobra.

Começa a chover novamente. Ruma até ao calçadão. Andarilhos e mercadores disputam espaços sobre as marquises. Faz frio. A chuva e o vento cortam o seu rosto. “Previsão de futuro”, lê num neon. A placa pende de uma barraca improvisada. Entra.

Como vou morrer?, perguntou ao feiticeiro.

O feiticeiro leu o destino do homem em dígitos de plástico retirados de algum teclado do início do século. O primeiro lance, que é o mais aberto, indica as palavras “vim” e “rua”.

- Ele diz que não é coisa pessoal. Tua morte vai vim da rua. O que for não vai ter a ver com a tua casa ou família. O segundo lance revela dois termos em inglês: “rec” e “few”.

- O que é isso, pergunta o homem.

- É “gravação” e... é... “menos”. Não, menos não. “Algum”. Em inglês, “few” é algum”.

O feiticeiro acendeu novamente a ponta de haxixe. Deu uma baforada. Prendeu. Soltou.

- Alguma gravação. É isso o que diz.

- Humm. Entendi. O que mais?

O feiticeiro recolheu os dígitos, chacoalhou, fechou os olhos e atirou sobre o tabuleiro de vime.- E, Q, U, C... “Que céu”.

- Que céu? - Isso.

- Humm. - Diz que tem a ver com as ideia. O que vai por cima da cabeça. É coisa de ideia. Tu vai morrer por conta de alguma gravação que tu publicar. É isso o que a voz do teclado me diz.

O feiticeiro começou a recolher o material de trabalho.

- Tá certo. Quanto é?

- Três. Um por lance.

- Em crédito ou moeda.

- Moeda. Só trabalho com dinheiro físico.

- Toma. Pode ficar com o troco.

- Deus lhe abençoe.

O homem não respondeu. Levantou-se do banco dentro da barraca improvisada em pleno calçadão central de Nova Desterro.

Fazia frio e parecia que voltaria a chover. Outra tempestade. Avistou um café. Entrou. Duas mulheres conversavam. A mais velha tossia muito. Ao ver o homem entrar ambas recolocaram suas máscaras AIr-9.6

- Bom dia, o que vai ser?

- O que tem?

- Álcool e água da torneira.

- Álcool, por favor.

- Pra consumir aqui ou pra levar.

- Consumir aqui. - Pra consumir aqui é mais caro.

– Tá bom, me dá assim mesmo. –

A mulher olhou-o com simpatia. Bebeu o álcool. Começou a chover. Rumou até o calçadão. Andarilhos, mercadores disputavam espaços sobre as marquises. Fazia frio. A chuva e o vento cortavam o seu rosto. “Leitura de Sorte e Previsões”, leu numa placa pintada a mão. A placa pendia de uma barraca improvisada.

Entrará. Como vou morrer?, perguntou à bruxa. O feiticeiro lê destino do homem em dígitos de plástico retirados de algum teclado do século XX. O primeiro lance, que é o mais aberto, indicaria as palavras “vim” e “rua”. O segundo lance revelava dois termos em inglês: “rec” e “few”; O médium acendeu novamente a ponta de haxixe. Deu uma baforada. Prendeu. Soltou. A bruxa recolhia novamente os dígitos, chacoalhava, fechava os olhos e atirava sobre o tabuleiro de vime. - E, Q, U, C... Tu vai morrer por conta de alguma gravação que tu publicar. É isso o que a voz me diz. O feiticeiro começou a recolher o material de trabalho. - O homem respondeu à benção. Levantou-se do banco dentro da barraca improvisada em pleno calçadão central de Florianópolis. Faz frio e parece que vai chover. Outra tempestade. Um café. Entrou. Duas mulheres conversavam. A mais velha tossia muito. Ao ver o homem entrar ambas recolocam suas máscaras. A mulher olhou-o com desejo. Bebeu água salobra com açúcar. Começou a chover. Rumou até o calçadão. Andarilhos, mercadores. Faz frio. A chuva e o vento cortam o seu rosto; “Leitura de futuro”.. A placa pendia de uma barraca improvisada. Entrou.

- Como vou morrer?, pergunta.

O vidente levanta sem dizer nada. Procura sua mochila. Abre o bolso mais externo. Encontra algo.

- Tu me ouviu? Quero uma consulta.

O outro encontra sua pistola. O homem não tem tempo de compreender o que estava acontecendo. Duas balas acertam sua a cabeça. Três ricochetam no calçamento e uma crava a perna de um transeunte.

O vidente senta-se e aguarda as viaturas de vigilância e os dois soldados que, ele sabia, quebrar-lhe-iam dois dentes: um molar e o canino.

A polícia não admite assassinatos em áreas de grande circulação pública.


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sábado, 26 de abril de 2025

16. MALLEUS MALEFICARUM

 





MALLEUS MALEFICARUM


“Enganam-se portanto os que afirmam não existirem coisas como bruxaria ou feitiçaria, ou os que professam tais coisas serem imaginárias ou existirem demônios só na imaginação de ignorantes e de populares, e também os que declaram ser equívoco atribuir a demônios certos fenômenos naturais que acontecem aos homens. Argumentam terem algumas pessoas imaginação tão extraordinariamente viva que creem ver vultos e fantasmas como se fossem aparição de espíritos maléficos ou de espectros de bruxas, embora tudo não passe de reflexos de seu próprio pensamento. Essa opinião, porém, vai de encontro à fé verdadeira. Esta ensina-nos que alguns anjos foram lançados do céu e hoje são demônios.”


- Heinrich Kraemer e James Sprenger. Malleus Maleficarum: O Martelo das Feiticeiras, o qual destrói as bruxas e a sua heresia, como uma espada de dois gumes. 1486.


Naquele noite de1968, estavam todos reunidos no Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da USP. Estavam lá, na Casa do Estudante, todas estrelas locais do Partido Comunista. O Zé Arantes, o Augusto de Azevedo Marques, o André Gouveia, o Luiz Del Roio, o Rui Falcão. Todos jovens. Todos inflamados pelo mais sincero ardor revolucionário.

No centro da roda, discursava José Dirceu.

- Eu me pergunto o seguinte: todos os nossos camaradas e companheiros, que através da História da Humanidade, deram as suas vidas, foram torturados, abandonaram família pra lutar por uma causa maior que era a causa da Humanidade, e deixaram suas mulheres, seus filhos, seus maridos de lado pra lutar por uma causa maior e deram a vida por essa causa, fizeram isso por quê?

À parte da agitação, sentado sozinho, estava um rapaz magro, pequeno e frágil. Ele observava tudo atento. Seus olhos arregalavam-se por trás das lentes do óculos de grau sempre que ouvia Zé Dirceu discursar.

- Nós não estamos lutando pelo imediato. Nós não estamos brigando aqui por aumento de salário pro mês que vem. Nós estamos brigando aqui pelo futuro da Humanidade!


As palmas vieram com o maior entusiasmo. As moças, sentadas no chão e encostadas nas paredes, com suas calças jeans e minissaia, assentiam e cochichavam entre si.

O rapazinho tinha 21 anos e era um dos poucos ali que não fazia parte do movimento estudantil. Tinha abandonado os estudos escolares há muito tempo. Zé Dirceu tinha 22 anos e era acadêmico de Direito na PUC. Dirceu era um moço bonito e fazia sucesso entre as militantes universitárias. O rapazinho, certa vez, havia namorado uma menina do interior.

- É isso. Essa reflexão a gente tem que fazer agora nessas duas, três noites que faltam pra gente decidir os destinos do Partido Comunista Brasileiro. E é um convite que eu faço aos companheiros: cada um com a sua consciência. Apenas quero lembrar uma frase que é atribuída a vários líderes históricos da luta por uma sociedade melhor. Uns atribuem a Guevara, outros atribuem a Fidel, outros atribuem... a… a um general é... das tropas revolucionárias de Cuba, mas o importante é que ela foi dita.

Dirceu era um orador brilhante e apaixonado.

- No momento em que os revolucionários cubanos estavam em Sierra Maestra, um sentinela correu até Fidel e disse: “Companheiro, estamos cercados. Somos 150 e a tropa do Fulgêncio Batista é de aproximadamente 800 homens. Fidel falou: “Tudo bem! Reúne o pessoal aqui. Chama os 150. Chamou os 150 e disse o seguinte: Olha, estamos cercados. Eles são 800.. NÃO VAMOS DEIXAR O INIMIGO ESCAPAR!

Mais palmas. A sala chegava a estremecer. O rapazinho também aplaudia. Enquanto isso, buscava o olhar do orador. Queria ser notado em meio ao movimento.

- Nós estamos cercados. O inimigo é forte. O inimigo é moderno. E o inimigo é cruel. E eu peço aos companheiros, com toda a pieguice que possa ter esse apelo patético: NÃO VAMOS DEIXAR O INIMIGO ESCAPAR!

Palmas. As meninas pareciam estar com calor. Os homens sorriam com alegria e aprovação. Tudo o que o rapazinho queria era um olhar de José Dirceu. Apenas um olhar.

- NÓS SOMOS MARXISTAS-LENINISTAS!

O rapazinho sentiu-se contemplado pela fala do líder.

Ao final da reunião quis falar com Dirceu, mas não pode. Toda a alta cúpula do movimento estudantil cercava o dirigente. Trocavam informações, tomavam notas, riam. Dizem que Dirceu tinha contatos com Marighella. O rapazinho não teve coragem de se aproximar. Pegou seus exemplares de Gramsci e Lenine, pôs em baixo do braço e foi embora sozinho. Mais uma vez.

Foi a última vez que se viram pessoalmente.

Meses depois Dirceu foi preso durante uma tentativa de realização de um congresso da UNE, em Ibiúna, no interior de São Paulo.

Na mesma semana da prisão de Zé Dirceu o rapazinho leu, pela primeira vez, um livro chamado O despertar dos mágicos, de Louis Pauwels e Jacques Bergier. A leitura foi realizada com discrição. O rapazinho não queria parecer alienado, nem pequeno burguês frente aos seus camaradas de militância.

Algum tempo depois, não seria mais necessário esse tipo de precaução.

O rapazinho saiu do PC.

Cinquenta anos depois.

William Bonner anuncia em pleno Jornal Nacional os resultados oficiais das eleições de 2018.

O velho sai do PC.

Acabou a sua última transmissão ao vivo do dia.

Considerou a live satisfatória. O entrevistador lhe parece um idiota, um imbecil, um cretino, mas ele se esforçou por demonstrar respeito. O analfabeto, por sua vez, não precisou se esforçar nada. Ele respeita o velho. Toda a emissora respeita. E agora provavelmente todas as emissoras do Brasil também respeitarão. O velho é a grande voz que ressoa sobre as consciências do País. Seu dia chegou. Sua opinião agora será lei. Os antigos inimigos sofrerão, os atuais pedirão misericórdia, os futuros nem chegarão a nascer. Fetos abortados...

Voltou ao computador.

Esqueceu de verificar aquele último vídeo que havia postado hoje de manhã.

- Ora, meu deus! Cientista político na USP é o sujeito que é assim: ele imita a linguagem acadêmica, mas no meio ele se trai e começa a falar a palavra “nós”. E “nós” significa militância comunista. Ahn? É um gênero misturado. Meio discurso acadêmico, meio discurso de autodefinição do grupo político. Ahn? Isso é característico da USP. Então...

Pausa dramática para o café. Precisava pensar em algo. Pronto. Já lhe veio algo em mente.

- E você vai chamar isso de Ciência Política?

Juntou algumas das folhas em branco que estavam posicionadas estrategicamente em cima da mesa. Com gesto firme, mas casual, disse em tom condescendente:

- Não meu filho, isso é propaganda política só.

Outra pausa dramática. Retomou empostando mais a voz. Agora ele segura uma caneta esferográfica e bate com a ponta pontuando a sua declaração:

- Agora, eu tô tentando analisar as coisas com a maior objetividade possível. Objetividade não quer dizer abstinência de juízo de valor, quer dizer que você não vai deixar que os seus desejos temores, esperanças, etecétara deforme a sua visão da realidade. Uhn...?

Retoma agora num tom paternal.

- Então, cê acha que eu quero que as coisas estejam assim? Eu não quero. Eu gostaria que estivessem muito melhor, mas infelizmente é assim que está, não é?


Pausou o video.

Lembrou que precisava preparar algo para a videoaula de amanhã. Levantou e foi até a estante. Uma bela coleção de coleções. Todos os clássicos estão aqui: toda a obra de Charles Maurras encadernada em couro legítimo, edições raríssimas de panfletos do Reverendo Coughlin, primeiras edições do grande Farias Brito, exemplares em capa dura de G. K. Chesterton, Hilaire Belloc, Giovanni Gentile, Marcel Lefèvre, Primo Rivera, Oswald Mosley, Julius Evola, Miguel Reale, Plínio Salgado (toda a obra), Hélio Vianna, António Sardinha, Alfred Rosenberg, Joseph Goebbels... E, claro, a sua jóia da coroa: Uma linda e imponente edição francesa do século XIX da obra completa de Aristóteles em grego... e latim. Ele não lia em grego. Também não lia em latim. Mas se virava no espanhol e tinha o inglês como sua segunda língua. Era o bastante.

Percorreu com o indicador as lombadas dos livros.

Parou em Tomás de Aquino. A bibliografia básica desse módulo do curso. Pegou um volume da Summa. Voltou à escrivaninha e abriu ao acaso.

"Art. 2 — Se a alma intelectiva é causada pelo sêmen."

O velho interessou-se.

“O segundo discute-se assim. — Parece que a alma intelectiva é causada pelo sêmen. 1. - Pois, diz a Escritura: Todas as pessoas que tinham saído da coxa de Jacó eram ao todo sessenta e seis. Ora tudo o que é gerado do homem o é pelo sêmen. Logo, também a alma intelectiva.”

Pensou que poderia expôr amanhã aos seus discípulos a polêmica questão da superioridade intelectual dos homens com relação às mulheres.

“2. Demais. — Como já se demonstrou, o homem tem uma mesma alma substancial intelectiva, sensitiva e nutritiva. Ora, a alma sensitiva do homem, bem como a dos animais, é gerada do sêmen...”

Redundâncias, redundâncias.

“3. Demais. — É de um e mesmo agente a ação que termina na forma e na matéria; do contrário a matéria e a forma não constituiriam, em si, uma unidade.”

O problema da superioridade intelectual masculina está intimamente ligada à superioridade física e a virilidade, claro!

“5. Demais. — É inadmissível dizer que Deus coopera com os pecadores.”

Homossexuais. Homossexuais tem uma clara tendência ao deficit cognitivo e ao analfabetismo funcional

“É impossível a virtude ativa..,”.

Passivo.

“...o corpo...”

Todos os homossexuais que ele conhecia eram burros.

“...é herético dizer que a alma intelectiva é gerada do sêmen.”

Sêmen.

Fechou o livro. Já havia estudado bastante. Amanhã improvisaria baseado nas décadas de leitura crítica da tradição escolástica.

Abriu a aba do navegador. Digitou os termos da pesquisa: “héteros” + “pecados capitais”. Aparecerem milhares de links.

“O PRIMO HÉTERO DA CAPITAL”.

Gays. Clicou.

“Era sábado de manhã. Meu primo veio de São Paulo para o interior...”

Ibiúna.

“Ele tinha uns olhos muito intensos, era alto, cabelos longos, um rosto viril, barba por fazer. Ele tinha 22 anos na época.”

Ele tinha 22 anos.

"Eu espero que ninguém saiba disso.”

Clandestinidade.

“Fica tranquilo, eu não vou contar pra ninguém.”

Ninguém vai saber.

“Entramos juntos no banheiro.”

O velho sentiu um movimento dentro da fralda geriátrica.

“Nossa boca encaixava perfeitamente.”

Levantou e foi até a porta. Ele estava sozinho. Por via das dúvidas fechou-a com chave.

Voltou ansioso.

“Ele foi lentamente colocando o meu caralho na boca dele enquanto olhava bem dentro dos meus olhos.”

É difícil conseguir um início de ereção depois dos 70. Ainda mais com todos os problemas de saúde que se costuma desenvolver nessa idade.

“Depois ele chupou meu rabo por minutos...”.

Rabo.

“Ele chegou por trás...”

Cu.

“Forçou um pouco e entrou...”

O pênis do velho não conseguia ficar ereto. Apenas saltitava meio flácido, caindo para os lados das suas coxas brancas. Ele cuspiu na mão e começou a alisar a glande.

“... acelerou, eu urrava de tesão.”

Come o cu dele.

“... a gente não podia demorar, então acelerou ainda mais e tirou...”

“Uns olhos muito, muito intensos”

Ibiúna.

“... bateu uma e ficou todo melado...”

Porra.

“... com a sua mão toda lambuzada, começou a bater uma para mim.”

Bate.

“... beijei ele e peguei sua mão, chupando dedo por dedo.”

Sêmen.

“Porra gostosa.”

Bate.

Gostoso.

Bate gostoso.

Bate.

Só mais um pouco.

Olhos viris.

Bate.

Só mais um pouco.

Masculinidade.

Bate...

Força...

Bate.

Força.

Bate!

Força!

Bate!

Bate pra ele.

Só mais um pouco...

Bate com ele.

Barba por fazer...

Bate nele.

Só mais um pouco...

Bate nele!

Queria comer o cu dele.

Bate nele!

Queria chupar o cu dele.

Bate nele!

Cuzinho.

Bate nele!

Rabo.

Bate nele!

Caralho.

Bate nele!

Pau.

Bate nele!

Porra.

Bate nele!

Sêmen.

Bate nele!

Goza pra mim.

Bate nele!

Goza no meu cuzinho.

Bate nele!

Só mais um pouco...

Só...

… mais...

...um...

...pou...

- Dirceuargh!

Olhos arregalados. Tristeza. Desespero. Dor. Ele parecia morrer.

- Eu te amo, Zé. Eu te amo. Olha pra mim, Zé. Eu te amo. Por favor, olha pra mim. Olha pra mim...

Ninguém ouviu os gemidos e o choro que vinha de dentro do escritório. A casa estava vazia e não existiam vizinhos. Ele era um homem solitário.

Ele gozou de pau mole e quase sem esporrar.

Foi ao banheiro.

Expeliu uma coisa mole, meio vermelha, meio amarelada de dentro dos intestinos. Algo como um... aborto. Efeito de algum dos muitos remédios que vem tomando, provavelmente. Precisava parar com a clozapina. De novo.

Como era inverno na Virgínia e a calefação era ruim, preferiu não tomar banho. Acendeu o último cigarro do maço. Pensou em comprar um novo rifle. Pôs o pijama e foi deitar. Dormiu um sono agitado, mas sem sonhos.

Amanhã teria muito o que ensinar aos seus discípulos.


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"ANTROPOCENO POBRE" (Link para o livro completo)

  "ANTROPOCENO POBRE", de Luiz Souza (Link de acesso livre para o livro completo) - Arte original da capa do livro "Antropoce...