quarta-feira, 9 de abril de 2025

O VELHO NO BAR

 




Me chamo Z. Sou um velho desgastado sobrevivendo num mundo que se suicidou.

É o que eu vejo ao olhar pra mim e ao meu redor.

E não me comovo mais.

Andros serviu a dose sem olhar pra minha cara.

Sabia que eu não tinha crédito, mas às vezes deixava eu ficar ali só pelo barulho. Eu era o móvel quebrado enfeitando o canto do bar dele quando todas as coisas que infestavam a noite já tinham voltado pros seus esgotos.

- Tu sabes o que é guardar parte do teu próprio esqueleto num bolso, Andros? — perguntei tentando provocar uma conversa e sacando a minha caixinha de munição que eu uso como porta-coisas.

O borg cheio de implantes no crânio, do outro lado do balcão, girou a cabeça como se estivesse em outro mundo. Acho que estava mesmo conectado em alguma rede neural. Era comum alguns ficarem ali praticando voyerismo on-line.

Andros limpou um copo com o mesmo pano podre de sempre.

- Tá cheirando pilha de novo, Z?

Abri a caixa. Dentro, três fios de cobre e um osso de polímero que já foi meu joelho direito.

- Comprei esse joelho quando tinha 48 anos. Tava trabalhando na usina de reciclagem 3. Trocava filtro de césio 12 horas por dia. Aí um cilindro vazou e comeu minha perna.

O Andros parou de limpar o copo.

- Me deram esse osso de presente quando me aposentei. Disseram que era "gratidão da Empresa". - Dei uma risada que virou tosse. - Três meses depois, cortaram minha aposentadoria por corte de gastos.

Joguei o osso no balcão. Ele rolou. Andros olhou com indiferença.

- E aí tu ficou com o osso e eles ficaram com os créditos?

- Fiquei com o que importava. Meu ex-patrão enfiou um bala nos miolos no ano seguinte. Não me pergunte porquê.

O silêncio de Andros foi a única resposta.

- Existem muitas maneiras de ser feito em pedacinhos, Andros.

O bar ficou quieto. Só o zumbido do freezer quebrado enchendo o ar. Andros devolveu meu joelho e serviu outra dose.

- Essa é pra tua coleção de ossinhos, Z.

Bebi de um gole. Ardia como óleo. Acredito mesmo que 30% daquilo era óleo queimado.

Coloquei de volta o osso na minha caixa de munições. Guardei ao lado de um canivete e um teaser velho.

Do lado de fora, um dron de vigilância passou iluminando a rua.

Deixei que iluminasse minha caneca vazia - meu único espelho nesses tempos que descartam e esquecem seus próprios ossos.                                                                                                                 


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THE OLD MAN AT THE BAR


My name is Z. I’m a worn-out old man surviving in a world that committed suicide.

That’s what I see when I look at myself and everything around me.

And I don’t feel anything anymore.

Andros poured the drink without looking at me.

He knew I had no credit, but sometimes he let me stay just for the noise. I was the broken piece of furniture decorating the corner of his bar once all the things that infested the night had crawled back into their sewers.

“You know what it’s like to carry part of your own skeleton in your pocket, Andros?” I asked, trying to spark a conversation as I pulled out my ammo box that I use to hold my things.

The borg with a head full of implants, on the other side of the counter, turned as if he were in another world. Probably was—plugged into some neural net. It was common for some to just sit there, practicing online voyeurism.

Andros wiped a glass with the same filthy rag as always.

“Smelling battery acid again, Z?”

I opened the box. Inside, three copper wires and a polymer bone that used to be my right knee.

“Bought this knee when I was 48. Was working at Recycling Plant 3. Changed cesium filters twelve hours a day. Then a tank leaked and ate my leg.”

Andros stopped cleaning the glass.

“They gave me this bone as a gift when I retired. Said it was ‘the Company’s gratitude.’” I laughed, which turned into a cough. “Three months later, they cut my pension for ‘budget adjustments.’”

I tossed the bone onto the counter. It rolled. Andros watched indifferently.

“So you kept the bone, and they kept the credits?”

“Kept what mattered. My old boss put a bullet in his brain the next year. Don’t ask me why.”

Andros’ silence was the only answer.

“There are many ways to be torn to pieces, Andros.”

The bar fell quiet. Only the hum of the broken freezer filled the air. Andros handed my knee back and poured another shot.

“This one’s for your little bone collection, Z.”

I drank it in one gulp. Burned like motor oil. I’m pretty sure 30% of it was burnt oil.

I put the bone back in my ammo box. Stored it next to an old switchblade and a broken teaser.

Outside, a surveillance drone passed by, lighting up the street.

I let it shine on my empty mug—my only mirror in these times that discard and forget their own bones.


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quinta-feira, 3 de abril de 2025

CONTRA AS MÁQUINAS DE ESQUECIMENTOS

 

O GLITCH COMO MÉTODO EM ARTE E HISTORIOGRAFIA

por Luiz Alberto de Souza



Representação imaginada pela Gemini de um glitch num manuscrito do século XIX.

A "História oficial" - toda a bibliografia que aprendemos nas escolas, academias e outras instituições com pretensões à estabilização do saber coletivo - é necessariamente uma máquina de esquecimentos. Ela opera por meio de exclusões sistemáticas — do cânone literário aos museus —, apagando vozes dissonantes em nome de uma versão do passado supostamente coerente e fiel à verdade.

Nós, historiadores e outros profissionais do passado, sempre tentamos mantê-la “funcionando” de modo mais ou menos “regular”.

Memória fragmentada, esquecimento espontâneo ou forçado, apagamento violento, distorções convenientes… Tudo isso sempre fez parte da oficina – às veze suja - do historiador profissional. Seja no momento em que ele está cumprindo o seu trabalho como agente, seja quando ele está apenas observando a lida dos colegas. Seu trabalho como especialista no passado humano é, em grande medida, conseguir equilibrar todos esses elementos de modo que o produto final – o texto historiográfico - não resvale excessivamente nem para o lado da ficção, nem para o anacronismo non sense.

Mas e se, em vez de tentarmos "consertar" essa máquina, buscássemos provocar nela curtos-circuitos?

E se adotássemos o “glitch” — o erro que revela a falha do sistema — como método para desmontar as Histórias oficiais e reinventá-la conforme as perspectivas opostas?

O simbolismo brasileiro, meu objeto de estudo por décadas, é um exemplo. O escritor negro Cruz e Sousa, um dos principais poetas do movimento simbolista (manifestação estética oitocentista que incluiu nomes como Mallarmé, Rimbaud e Verlaine), está sendo reduzido a uma nota de rodapé na historiografia literária oficial do seu próprio país de origem, que privilegia autores brancos e projetos estéticos hegemônicos ( ABL, Departamentos de Letras, imprensa literária...). A História da Arte, por sua vez, segue lógica similar: o que é marginal vira "erro", e o erro é apagado. Aqui, outro catarinense nos serve de exemplo: Victor Meireles. Primeiramente aclamado como gênio da Corte durante o tempo de D. Pedro II, foi reduzido ao esquecimento institucional e descrédito artístico com o advento da República. Não havia lugar para um “monarquista romântico” na moderna Academia Nacional de Belas Artes do jovem regime dos tenentes positivistas.

Cruz e Sousa e Meireles foram glitches históricos — anomalias que expuseram as falhas do projeto liberal-racial brasileiro escravocrata e seu irmão sucessor, o capitalismo moderno. Sua obras e trajetórias interromperam o fluxo "normal" da cultura letrada e artística brasileiras, tornando visíveis seus mecanismos de exclusão e contradições internas. 

Hoje, em arte digital, o glitch ocorre quando um arquivo é corrompido, revelando o código oculto por trás da imagem perfeita. Como artista, tenho experimentado frequentemente esse recurso estético numa forma audiovisual a qual, por falta de outro termo conhecido por mim, chamo “reelspoiesis”. Isto é, criação literária por meio da linguem “reels” própria das novas redes sociais, tipo Instagran ou TikTok.

Transposto para a pesquisa histórica, o conceito de “glith” nos permitiria, por sua vez:

1) Expor falhas: Mostrar como o cânone literário ou artístico foi construído sobre exclusões (a marginalização dos simbolistas dentro do cânone literário brasileiro, p. ex.);

2) Aproveitar as brechas: Usar fontes "menores" (as cartas, panfletos, obras ignoradas ou esquecidas dos autores ditos “menores” do século XIX...) para reconstruir visões históricas recalcadas ou suprimidas pelas versões oficiais do passado.

Outro exemplo pessoal no campo da produção artística: Meu trabalho com o grupo de arte contemporânea “Gang do Lixo”, principalmente a minha parceria com o multiartista catarinense Paulo Villalva (Amaweks), buscou transformar “detritos culturais” (fragmentos semióticos das culturas popular, de massa e erudita) em arte crítica e reflexiva, assim como uma historiografia glitch ou uma ficção histórica glitch poderiam transformar testemunhos apagados ou esquecidos em novas epistemologias. 

No mais, ainda no campo da experimentação estética e militância cultural, a “Revista Anacronia”, lançada pela Gang do Lixo em 2022, defendeu a mistura deliberada de temporalidades. No contexto da revista esses não eram "erros" históricos, mas uma estratégia para:

I - Descolonizar o tempo linear, mostrando que passado e presente coexistem (A permanência do racismo do século XIX no hoje, como demonstrado literariamente no conto “Firmina”, do historiador André Luiz, em Anacronia n. 1, por exemplo).

II - Criar novas genealogias, onde vanguardistas dos anos 1920 dialogam com a contracultura dos anos 70 ou a cultura dos games atuais (ver o artigo ficcional “Kandinsky, o rebelde abstrato”, assinado por Judas Capiango e o jogo game experimental "Triângulo-Círculo-Quadrado", de Amaweks).

Propõe-se aqui, portanto, uma práxis poética e historiográfica que:

1. Adote o glitch como gesto crítico (como Hélio Oiticica fez com o parangolé, expondo as fraturas da arte elitista).

2. Use a arte para reescrever consciente e criticamente a História como fato social, tal como fez o cinema de Glauber Rocha quando reinventou poeticamente o sertão como espaço político (na tradição de Euclides da Cunha).

3. Inverta a lógica do arquivo, tratando documentos esquecidos como matéria-prima para insurgência (Exemplo prático: fragmentos de filmes de propaganda ufanista da época do regime militar e recortes de telejornais atuais como artefatos glitch para composição de uma bricolage audiovisual que funcione como reflexão sobre a persistência da violência política no Brasil).

Em suma, desmontar a História oficial não é negá-la, mas hackeá-la — corromper seus arquivos para revelar o que eles escondem. A arte contemporânea, nesse projeto, é tanto ferramenta quanto fim: ela expõe as falhas do sistema e, ao mesmo tempo, oferece novos códigos para ler o mundo. Se o século XX nos legou a desconstrução, o XXI exige reconstruções anacrônicas, onde o erro vira estilo, a falha vira potência, e o “lixo cultural” vira arte humana, crítica e liberadora.

A historiografia do futuro, se houver, será instável, explosiva e escrita em modo glitch — ou degenerá em mito.


Florianópolis, 3 de abril de 2025.


O VELHO NO BAR

  Me chamo Z. Sou um velho desgastado sobrevivendo num mundo que se suicidou. É o que eu vejo ao olhar pra mim e ao meu redor. E não me ...