domingo, 23 de novembro de 2025

SOBRE LER CRUZ E SOUSA (e Escrever História Materialista) DIALÉTICAMENTE

 

"A Prisão de Haeckel"
(Luiz Souza. Arte Digital, 2025)


(...)

Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente
amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento,
todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta,
quanta raça da África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara
para sempre com o riso haeckeliano e papal!
Surgidos de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda,
cujas plumagens de aborígine alacremente flutuavam através dos
estilos.
Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras,
as densas argumentações e saberes, desdenhar os juízos altos, por
decreto e por lei, e , enfim, surgir...
Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha
bitolar que irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra,
explode, transborda e se propaga.
Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o
peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça
diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.
Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na
Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa,
ingênita, de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e
desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na
força impetuosa e indomável da Vontade.

(...)


- João da Cruz e Sousa ("Emparedado", 1898)



Sou historiador. E estudei e estudo Cruz e Sousa.

Pesquisei sua obra completa e seus arquivos.

Transcrevi, estudei, anotei criticamente e publiquei sua correspondência pessoal inédita.

Tentei cavar sua alma palmo a palmo. Que acho, apesar de ser materialista, que sim, ele tinha.

Isto porque tento ser materialista e dialético ao ser historiador.

E, principalmente, ao ler um poeta espiritualista e ao mesmo tempo profundamente materialista, como Cruz e Sousa.

Às vezes, quando escrevo, busco atingir o subjetivo do ser analisado. Entender o que poderia levar alguém a fazer ou dizer algo que, objetivamente, fez ou disse.

E é aí que muitos colegas, também materialistas, discordam de mim.

Chamam-me, às vezes pelas costas; às vezes pelas ventas: HISTORICISTA, ou, PSICOLOGIZANTE.

Acho graça, mas dá o que pensar.

Se não, vejamos:

A acusação de que a utilização de fontes subjetivas - como cartas pessoais, diários e obras literárias - e a pretensão de acessar as dimensões não ditas ou o inconsciente histórico constituem um método "psicologizante" ou "historicista" é uma objeção previsível vindo de onde vem, porém, infelizmente, é epistemologicamente limitada.

Esta crítica – goste-se ou não – emerge de um paradigma estritamente positivista, que elege a neutralidade, a fatualidade “pura” e a documentação oficial como únicos árbitros da verdade histórica. No entanto, tal postura ignora a natureza fundamental da experiência humana e da própria dialética histórica.

A recusa em analisar a dimensão subjetiva não é rigor metodológico: é a renúncia a compreender um dos motores mais profundos da história. As estruturas sociais e econômicas materializam-se na consciência humana; é na esfera do subjetivo - nos conflitos íntimos, nos traumas silenciados, nas aspirações expressas pela arte - que encontramos alguns dos efeitos mais concretos da materialidade. Ignorar esta camada é produzir uma história superficial, que descreve eventos sem compreender suas ressonâncias humanas reais.

Talvez, quem sabe, por não se pretender fazer uma história de fato humanística.

Eu, do meu ponto de vista, enfatizo a palavra “humanas” na definição da História como ciência HUMANA. Um olhar que em muito contribuiu para o meu interesse em Cruz e Sousa, um dos maiores poetas em língua portuguesa do MUNDO.

A obra de um poeta como Cruz e Sousa é um caso paradigmático em muitos sentidos. Interpretar hoje o seu simbolismo estético como mero escapismo inócuo, como geralmente se o interpreta e diminui, é perpetuar a mesma cegueira epistemológica que ele contestou entre seus contemporâneos. Sua busca pelo inefável e espiritual era uma resposta crítica e material a uma modernidade excludente, que usava a "razão" positivista como ferramenta de dominação. O historiador que hoje é criticado por buscar o "não dito" na poesia de Cruz e Sousa está, na verdade, alinhando-se com a luta do próprio poeta contra um cientificismo reducionista.

Portanto, rapaziada, a acusação de “historicista” ou “psicologizante”, eventualmente direcionada à minha pessoa, não invalida o método dialético que busco aplicar e que me leva a escrever o que escrevo. Antes, o valida. Ela demonstra que o gesto de exclusão epistemológica atual é o mesmo, seja no século XIX contra o poeta simbolista, seja no presente contra o historiador que “ousa” perscrutar a subjetividade. Esta repetição do conflito não é uma falha, mas a verificação experimental de que se está a confrontar as estruturas hegemônicas do conhecimento estabelecido.

E está tudo bem.

Então, é isso: acho que a tarefa do historiador dialético não é a de fazer pilhas de fichamentos, montes e montes de anotações mortas, mas a de tentar revivificar a experiência humana na sua totalidade, incluindo seus aspectos contraditórios, subjetivos e inconscientes (Eric Hobsbawm, por exemplo, concordaria). Se para isso é necessário ser chamado de "psicologizante", então assume-se esse título não como uma desqualificação, mas como um retorno positivo de que se está no caminho certo: o caminho de uma história profundamente humana e, por isso, verdadeiramente científica.

E, no mais, viva Cruz e Sousa!

E leiam-no.

Vale a pena.


* * *

E para saber mais sobre Cruz e Sousa recomendo esse episódio comemorativo do Podcast Meia-Noite do Século sobre o poeta catarinense: 

https://music.amazon.co.uk/podcasts/d92452d1-d843-497b-a7a7-25027a70e0e1/episodes/71eac1b2-6a65-4529-ab05-b80c97c70617/meia-noite-do-s%C3%A9culo-especial---cruz-e-sousa


Já minha pesquisa pode ser lida e baixada gratuitamente pelo site do Repositório Institucional da UFSC de Teses e Dissertações do Programa de Pós-Graduação em História:

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/180893




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