sábado, 22 de junho de 2024

GILBERTO GIL EM DESTERRO

 


"Gilberto Gil em Desterro" (Guache sobre papel, 2023)
23



"Gaivota menina

De asas paradas

Voando no sonho

D'aguas da lagoa

Gaivota querida

Voa numa boa

Que o vento segura

Voa numa boa

Gaivota na ilha

Sem noção da milha

Ficou longe a terra

Gaivota menina

Gaivota querida

Voa numa boa

Que o alento segura

Voa numa boa

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti

Gaivotar seria poder te eleger para mim

Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda

Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim

Sobrevoar meus temores, meus amores

E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos

Dos teus sonhos de subir

De subir aos ares

Gaivota querida

Gaivota menina

Pousa perto de mim"


- GILBERTO GIL. "Gaivota" ("Refavela", 1977).


À


Ignez Gosmar de Souza, minha avó açoriana.

Maria Bernadete de Souza, minha mãe cabocla.

Jorge Silviano, meu avô xoclengue.

Todos catarinenses.

Todos brasileiros.

In memorian.


* * *


Eu quero contar da forma o mais simples possível uma história.


Escolho a forma do ensaio biográfico porque sinto que, para mim, esta

seja a linguagem mais adequada.


O ensaio é um tipo de texto literário que permite ao autor a fluidez

da divagação, o vaivém nos tempos, as anacronias, as liberdades de

memória e imaginação.


Falarei de temas que me são tão sensíveis e pessoais que não quero e

nem posso restringi-los a exigências de formas fixas ou

estereotipadas.


Não quero falar de certos golpes pessoais e coletivos com a hipocrisia

de um historiador.


Não quero fingir uma objetividade impossível.


* * *


Era 1976 e estávamos no alvorecer do projeto histórico neoconservador

que desembocaria, anos depois, em Margareth Tatcher, Ronald Reagan e

José Sarney. Em janeiro, à luz de um dia de verão, o ditador

brasileiro General Ernesto Geisel usou o AI-5 para cassar os mandatos

de dois deputados estaduais paulistas acusados de terem recebido apoio

eleitoral do PCB (partido banido do sistema político brasileiro desde

1956 e ferozmente perseguido a partir do golpe de 1964). Por seu

turno, um pouco mais afastados do sol, nos porões dos quartéis,

delegacias e outras repartições públicas, homens, mulheres, velhos e

crianças eram mortos e torturados em nome da ideologia de Segurança

Nacional. O secretário de estado estadunidense Henry Kissinger, por

sua vez, visitou o Brasil em fevereiro e, ao que parece, considerou

que todas as nossas instituições estavam funcionando perfeitamente.

Enquanto isso, na praiana e quase sempre pacata cidade de

Florianópolis, ilha capital de Santa Catarina, o ex-exilado político

Gilberto Gil, junto aos seus companheiros de grupo “Os Doces

Bárbaros”, cruzavam a ponte Hercílio Luz, cartão postal do estado. A

juventude liberal e progressista da cidade, muitos filhos e filhas dos

que sofriam in loco as conseqüências da ditadura, estava ansiosa pela

visita. O show seria um acontecimento extraordinário já que os

artistas nacionais, naquela época, dificilmente paravam por aqui.


Florianópolis não estava prevista de início no mapa da turnê da banda.

Essa inclusão foi exigência direta de Gilberto Gil e Caetano Veloso.

No documentário “Os Doces Bárbaros” (Brasil, 1976), de Jom Tom Azulay,

há um trecho de áudio de Caetano dizendo que ambos “gostavam muito” da

cidade. De fato, aspectos da cultura popular e beleza da paisagem

natural da Ilha de Santa Catarina tem boas famas seculares. No mais,

pelo seu passado portuário, Florianópolis, de certo modo, reproduz em

micro-escala a própria experiência cultural brasileira. Aqui, talvez,

o Brasil do litoral sul tenha encontrado a sua síntese mais

representativa. Era, portanto, compreensível o interesse e apreço dos

então jovens tropicalistas por esse lugar que, no século 19, era

chamado de “a chave do Brasil meridional”.


Mas Florianópolis tinha - e ainda tem - um outro lado. Florianópolis,

antiga “Cidade de Desterro”. Florianópolis, a cidade que depois dos

massacres e chacinas praticadas pelo Exército Brasileiro em 1894,

tornou-se a “Cidade de Floriano”. O nome da capital de Santa Catarina

é uma humilhação imposta por um ditador militar a um povo rebelado e

vencido.


Essa cidade , quando Gilberto Gil passou por aqui, em1976, resolveu

deixar bem claro a ele, a Caetano Veloso, à Maria Bethânia, à Gal

Costa e a todo o seu público que não aceitaria nada daquilo que esse

segmento da juventude brasileira representava naquele momento: os

ventos de Maio de 1968, o desejo de liberdade e livre-expressão, a

subversão comunista” inimiga dos interesses da Nação, da Ordem e do

Progresso. Essa cidade que é a capital de um estado que tem como hino

a letra de um poeta romântico passadista, anacrônico no pior sentido

do termo, chamado Horácio Nunes Pires, inimigo fidagal de Cruz e

Sousa. Essa cidade que em 1976 ainda ouvia Bossa Nova e recebia de

braços abertos, na figura de Luís Henrique Rosa, a Broodway, na figura

de Laisa Minelli. Essa cidade que não tem crítica cultural, que não se

interessa em apresentar uma visão própria do país. Essa cidade tão bem

representada no filme “Desterro” (1992) e “Novembrada” (1998), ambos

do cineasta Eduardo Paredes, é uma cidade desde sempre condenada a ser

silenciada, calada.


E foi exatamente essa função que os agentes daas forças policiais

fizeram, naquele dia de 1976, quando bateram nas portas de Gilberto

Gil, Caetano Veloso e seus amigos técnicos de som e músicos. Foram dar

uma “batida”. Fazer uma “vistoria de rotina”. Ou seja, o xerife do

turno foi mostrar aos forasteiros quem realmente mandava na cidade. E

eram o bons costumes.


Gil, na ocasião, estava, segundo o próprio delegado, em depoimento

registrado no filme “Os doces bárbaros”, hospedado no quarto 306 de um

hotel na Avenida Hercílio Luz. O músico bahiano trazia consigo o

equivalente a três cigarros de maconha (um cigarro preparado e mais

quantidade suficiente para se fazer mais um ou dois baseados).  Isto

foi o suficiente para ele ser detido, encaminhado para julgamento e

condenado à internação no Instituto Psiquiátrico São José. Lugar onde,

em 1976, a minha mãe  acabava de ingressar no quadro dos trabalhadores

responsáveis pela cozinha.


Minha mãe chamava-se Maria Bernadete de Souza. Ela era filha de

camponeses da antiga região de Barracão, no interior de Santa

Catarina. Minha vó era de ascendência açoriana e meu avô um xoclengue

aculturado”. Um “bugre” como os colonos da região diziam à época e

hoje em dia. Maria Bernadete foi criada por uma família de áusteros

colonos alemães de São José, cidade que abriga uma das mais antigas

comunidades alemãs do Brasil. Ela foi “dama de companhia”, “ama seca”

da sua madrinha, a matriarca dessa família, durante décadas. Toda a

sua mocidade. Por conta do seu trabalho doméstico em tempo integral,

jamais teve acesso pleno à instrução formal. Ela não “viveu”. Ao menos

não no mesmo sentido que as filhas da sua madrinha. Jovens herdeiras e

de sangue germânico. Sua alforria temporária chegou em 1972, por conta

do seu casamento com Luiz Carlos de Souza, meu pai. Da sua educação

moral prussiana, austera, minha mãe trouxe consigo certo sentimento

com relação à educação e cultura que meu pai, infelizmente, não havia

podido desenvolver como décimo segundo filho de uma lavradora viúva e

analfabeta. Este detalhe haveria de ser muito importante na nossa

história familiar posterior.


* * *


Uma das conseqüências de se exercitar a reflexão histórica é que os

distanciamentos afetivos com relação aos fatos passados vão

diminuindo. Em outras palavras, nós começamos a amar e odiar de modos

cada vez mais vívidos coisas e gente morta e desaparecida há muito

tempo.


Nasci em Florianópolis, na Maternidade Carmela Dutra, em 1982. Sou,

como dizem os nativos da ilha, “daqui”. Não sou “de fora”. Sou

daqui”. E o que isso quer dizer para um “nativo”?


Significa dizer que estou enraizado em alguma comunidade local.

Florianópolis, uma ilha tropical de urbanização recente, ainda lembra

dos seus tempos de vilas de pescadores e agricultores semi-isoladas.

Nessas vilas, distanciadas umas das outras por caminhos e trilhas,

todos os moradores se conheciam. Todos os vizinhos eram conhecidos e

todas as caras, nomes, funções, modos, linguagens eram mais ou menos

familiares. Ser daqui, portanto, era algo que tinha a ver com

reconhecimento.


Por alguma razão eu nunca convenci ninguém do fato de eu realmente ser “daqui”.


Há um tempo atrás, por exemplo, num domingo à tarde, eu e minha esposa

visitamos a Igreja da Freguesia da Lagoa da Conceição, no norte da

Ilha. A igreja é uma das construções mais antigas da cidade. A certa

altura fomos abordados pelo padre, que nos confundiu com turistas

(sempre nos confundem com turistas em Florianópolis).


- Vocês são de onde?


- Eu sou de Nova Prata, no Rio Grande do Sul. Ele é daqui.


- És daqui?


- Sim. Sou daqui.


- Daqui onde?


- Nasci em Florianópolis, mas me criei no continente. Em São José.


- Humm.


O padre aceitou minhas explicações, mas senti durante toda a nossa

conversa uma atitude de estranhamento e até desconfiança. Por alguma

razão o homem, um velho “nativo” enraizado nos costumes, na língua,

nos valores locais, não me reconhecia como um igual. Por que seria?

Havia, há algo em mim que não me compatibiliza com o senso comum dos

nativos acerca do que é ser daqui. Demorei para compreender, mas hoje,

depois de uma série de outras experiências, compreendi finalmente: há

um elemento fenotípico importante na minha constituição física que

contribui em muito para esse efeito. Meu pai vem de uma linhagem

familiar quase toda constituída por descendentes de açorianos do

litoral. Minha mãe, contudo, era uma mestiça do planalto. Filha de mãe

açoriana e pai xoklang. Meus ancestrais eram denominados bugres pelos

antigos colonos europeus. Bugres eram homens e mulheres remanescentes

de antigos povos nômades que viviam no interior do estado por ocasião

da chegada dos primeiros invasores e colonos europeus a esta parte do

continente. Herdei do meu avô materno, Jorge Silviano, um índio

apartado de sua comunidade ainda criança, os traços do rosto e os

modos. Não pareço fisicamente com um europeu, portanto. Pareço com um

bugre”. Um “bugre”  com maneirismos e linguagem de “branco”, mas

ainda assim um “bugre”. Ora, não existem “bugres” na Ilha. Os “daqui”

já os expulsaram há tempos. Como, então, eu poderia ser “daqui”?


* * *


O catolicismo e o racismo são elementos estruturantes da mentalidade

ilhéu. Se complementam e reforçam um ao outro. Ama-se o Papa como

verdadeiro representante de Deus na Terra (cf. registros da visita de

João Paulo II à Florianópolis, em 1992) e despreza-se o negro e

indígena como subhumanidades (cf. a tradição de políticas municipais

higienistas e persecutórias aos pobres e moradores de rua). Cresci

numa família operária da periferia da grande Florianópolis. Meus

parentes eram e são produtos dessa sociedade e cultura. Vivi na carne

todas as benesses e desgraças de se pertencer a uma cultura de base

colonial açoriana no sul do Brasil.


Minha avó, por lado paterno chamava-se Ignez Gosmar de Souza. Ela era

parteira e aposentou-se como lavradora. Morreu em 1991, aos 90 anos.

Convivi com ela do meu nascimento até os nove anos de idade. Era uma

mulher dura, áspera e muito devota. Muito apegada ao Sagrado Coração

de Jesus, Nossa Senhora e São Jorge. Seu catolicismo, contudo, não era

o oficial. Era o catoclicismo popular do interior de Santa catarina. O

mesmo que inflamou a imaginação dos Doze Pares de França, no

Contestado da sua infância e da dos nossos ancestrais.


Com ela aprendi a pedir benção e temer a Deus. Apesar de analfabeta,

tinha uma reverência muito grande ao saber letrado. Foi dela que

recebi de presente um dos meus primeiros livros: “Na Terra, no mar e

no espaço”, do educador gaúcho Hilário Ribeiro Jr., um livro escolar

do final do século XIX. Era uma edição original, com mais de oitenta

anos na época.


Minha avó me relegou esse alfarrábio como se fosse um tesouro.


Ela me disse:


- Pega, pra ti. Tu vais precisar.


E muitos anos depois eu realmente precisei desse livro. Ele foi a

primeira fonte que analisei como estudante na graduação do curso de

História da Universidade Federal de Santa Catarina.


Ainda o guardo.


Minha avó tinha o respeito pelas letras e educação formal que só os

pobres sabem ter num país como o nosso.


Por outro lado suspeito que tenhamos em nós algo da influência

cultural-religiosa do judaísmo ibérico medieval.


O amor judaico aos livros de algum modo parecia reverberar na mãe de meu pai.


E esse amor também me foi uma herança açoriana do litoral catarinense.


* * *


Açorianos, alemães, xoclengues, bantos nos legaram suas contradições.

Repetimos no nível micro os mesmos princípios que nos regem no macro.

Rejeitamos, desconsideramos, negamos a existência de certas

alteridades. Não reconhecemos certos outros. Eu mesmo nunca me vi como

mestiço, apesar de ser chamado quando criança de “Juruna”, em alusão

ao primeiro deputado indígena da república brasileira, em evidência na

mídia da época. Em casa, por sua vez, ainda muito jovem eu já percebia

a existência de certo tratamento diferenciado dos adultos com relação

a mim e minha irmã. Sobretudo por parte do meu pai e de outros

familiares quase sempre em benefício da minha irmã. Não por

coincidência ela é loira, possui bonitos olhos claros e não lembra em

nada os nossos antepassados xoklang. Meu pai chamava-a de “Alemoa”,

quando criança. No início da minha adolescência começamos a ter

problemas de relacionamento e nos afastamos. Desde então não

conseguimos mais conviver. Repetimos, portanto, no nível micro os

mesmos princípios que nos regem no macro. Em outras palavras: Santa

Catarina reproduz os princípios gerais que determinam a dinâmica da

sociedade brasileira desde o século XVI. Nós, os “daqui”, reproduzimos

em linhas gerais os mesmos princípios que determinam a dinâmica da

sociedade catarinense desde o século XVIII. E tudo isso, por sua vez,

deságua na negação de qualquer coisa que não as imagens do colono, da

colônia e da colonização. Tudo acaba por negar o outro.


* * *


Minha mãe tinha 33 anos em 1976, quando Gilberto Gil e os Doces

Bárbaros chegaram à Ilha de Santa Catarina. Ela trabalhava na função

de cozinheira junto ao Instituto Psiquiátrico  São José, clínica onde

Gilberto Gil cumpriu alguns meses de internamento compulsório para

desintoxicação”. Aquele foi o primeiro emprego com carteira assinada

que ela obteve na vida. A independência econômica conquistada nesse

trabalhoemprego lhe valeria força moral e econômica suficientes para

garantir, a despeito de todas as adversidades, a educação escolar de

minha irmã mais velha (em 1996, 20 anos depois, minha irmã foi a

primeira da família a conquistar um diploma universitário).


Minha mãe foi uma mulher bonita e mais ainda em 1976.


Uma cabocla morena de olhos verdes.


Lembrando desse tempo em que conviveu com minha mãe e outros

funcionários do Instituto São José, Gilberto Gil escreveu uma música

que sairia no seu disco “Refavela” (1977). Nesse álbum, o artista

incluiu algumas músicas que rememoram a sua passagem por

Florianópolis, essa cidade que ele achava tão bonita e que ele quis

tanto visitar com seus amigos em 1976.


A música “Sandra”, sexta faixa do disco “Refavela”, é dedicada aos

trabalhadores do Instituto Psiquiátrico São José. Eu gosto de pensar

que uma daquelas muitas mulheres chamadas Maria que ele cita na sua

música seja a Maria minha mãe. Ela era fã de Ronnie Von, o mais

tropicalista dos ídolos jovens do seu tempo, e adorava música

brasileira. Ela teria adorado poder ter ido ao show dos “Doces

Bárbaros” e visto de perto Gilberto Gil sob outras condições que não a

de interno penitenciário. Ela morreu em 2012, aos 69 anos de idade.

Ainda tinha olhos verdes muito vivos e inteligentes, mas nunca

entendeu bem porque haviam feito aquilo com uma pessoa tão boa e um

artista tão importante.


Eu entendo, mãe.


Agora, todos entendemos.


A cidade inteira entende.


Lagoa do Perí,


Nossa Senhora do Desterro,


Ilha de Santa Catarina,


Litoral sul brasileiro,


26 de dezembro de 2023


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