domingo, 20 de abril de 2025

10. OS RATOS, A TOCA E O CÓRREGO

 



10.

OS RATOS, A TOCA E O CÓRREGO


"Estou cavando uma nova toca!", disse Papai Rato, entusiasmado enquanto entrava no velho covil da família, "Vamos nos mudar em breve!". Mamãe Ratazana alegrou-se ao ouvir algo que já esperava há muito tempo, e todos os seus filhotes sorriram excitados diante da novidade. Menos um, o filhote cinzento. Ele nunca recebia as coisas da mesma forma que os outros ratinhos, que quase nunca faziam perguntas aos mais velhos, desde que estivessem sempre com suas panças bem cheias. Por isso, logo após o agito inicial da ninhada, o Ratinho Cinzento foi o único que não se afastou para brincar enquanto seu pai prosseguia com a boa nova, dirigindo-se sempre a Mamãe Ratazana. "É uma toca ótima, profunda, segura, e bem mais próxima dos milharais!", continuou o rato, incapaz de conter a própria empolgação. O filhote continuava observando quieto, enquanto via sua mãe sorrindo, de uma maneira que lembrava muito o jeito de sorrir dos seus irmãos menores, quando diante de uma boa porção de comida.

O ratinho não achava má idéia se mudar para uma toca melhor e mais próxima do milho, mas não se sentia plenamente satisfeito com o que, até então, lhes dissera o pai. Ele sabia o que havia próximo ao milharal, e queria saber mais sobre a nova toca. "É uma toca longe do córrego?", o ratinho sabia do perigo que o córrego representava nos dias de chuva forte. Já ouvira outros ratos maiores comentarem. Papai Rato lhe olhou sem responder e sem desfazer o sorriso. "É uma bela toca", disse, voltando os olhos para a sua mulher. "Uma linda toca próxima ao milharal!", assentiu a ratazana.

***

Os dias foram passando, e não se falava de outra coisa se não sobre o dia em que a família finalmente fosse ocupar a nova toca. Todos os dias o papai rato reforçava a idéia do quão maravilhoso seria morar num lugar mais seguro dos perigos da superfície, maior, e principalmente, mais próximo da plantação. E a cada dia, Mamãe Ratazana se enchia mais de esperanças e entusiasmo. "Seremos muito mais felizes na nova toca", dizia com um brilho nos olhos, cada vez mais semelhante aos dos irmãozinhos, sempre despreocupados, do Ratinho Cinzento. Este, por sua vez, achava curiosa a capacidade de sua mãe, em se contentar tanto, com algo que nem ao menos tinha visto.

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"Mas eu só quero saber se fica longe do córrego!", exclamou o ratinho, sem entender o porquê de nunca lhe responderem as perguntas direito. Seu pai já não tolerava mais aquelas perguntas inoportunas e desnecessárias, que só serviam para tirar o brilho dos planos da família. No início apenas as ignorava, depois tentou desqualificar a relevância daqueles questionamentos, agora, não conseguindo mais dissimular o incômodo, irritado, desqualificava também o Ratinho Cinzento. "O que um filhote bobo, que mal sabe andar com as próprias pernas, incapaz até mesmo de conseguir seus próprio sustento, sabe do mundo, pra vir se meter em conversas de adultos?". Mamãe Ratazana concordava, sempre em silêncio, com as observações do marido. Por que esse seu filhote não era como os outros? Feliz, contente, brincalhão e satisfeito? Tinha tudo para o ser. Sentia-se desconfortável com a idéia e tentava ocultá-la de sí mesma, mas no íntimo achava que o pobre filhote pudesse ser, de algum modo, doente, e isso a penalizava. O Ratinho Cinzento, por sua vez, ficava mais bravo do que triste com tudo isso, afinal qual era o problema de se fazer perguntas? Até que depois de certo tempo, começou a desconfiar das respostas nunca dadas por ninguém.

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Finalmente, havia chegado o dia. Conheceria, por fim, a nova toca. Sua mãe estava agitadíssima e sorridente como no primeiro dia que soube da mudança. Seu pai, ansioso por mostrar o novo lar à família, ia um pouco mais à frente do grupo, com passinhos rápidos. Seus irmãos, como de praxe, moviam-se como numa massa só, brincando despreocupados entre si, enquanto seguiam a ratazana. Só o Ratinho Cinzento não aparentava contentamento. Seu andar era moroso, e seus olhos, mirando sempre o chão do caminho, estavam apagados de qualquer entusiasmo. Se seus pais não estivessem tão imersos em seus próprios planos e otimismo, desconfiariam que o filhote cinza caminhava mesmo preocupado.

***

"Chegamos!", bradou Papai Rato, diante do novo covil. Houve uma gritaria geral, e os ratinhos, felizes como sempre, fizeram festa e começaram a correr, brincando de perseguição em meio ao extenso gramado diante da toca. Mamãe Ratazana sorriu satisfeita ao constatar a proximidade da nova do fértil milharal, e já se pôs a arrastar felicíssima uma espiga madura, caída próxima a entrada. E diante disso tudo, Papai Rato, estufava o peito, orgulhoso e radiante, pela aprovação de todos. Todos, menos um, o Ratinho Cinzento, que se aproximou dele, triste, sempre olhando para além da grama e do milharal, onde via a poucos metros da entrada da toca, as águas ruidosas, e para ele assustadoras, do córrego. "O senhor sabe o que dizem sobre o córrego nos dias de chuva, não é papai?", o rato desfez o sorriso e se afastou do ratinho sem olhá-lo, e se juntou à ratazana que continuava sorridente, a arrastar o milho.

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A noite, mesmo dentro da toca, o ratinho ouvia o correr constante e ameaçadoramente próximo das águas lá fora. Não dormia por causa disso, temeroso de que quando começasse a chover, acordasse quando já fosse tarde demais. Ao visto ele era o único que ouvia esse ruído, e principalmente, o único a se incomodar com a idéia de morar ao lado do córrego.

"De que adianta viver numa toca aonde a comida brota já na entrada, e o nosso único trabalho é o de arrasta-la cá para dentro, ou de viver protegido dos dentes e garras dos gatos e cães, numa toca profunda como esta, se tem de se viver constantemente com a ameaça de um mal que pode não só se abater sobre um ou outro, mas sobre todos nós, levando-nos de uma só vez?!", explodiu certa vez o Ratinho Cinzento, indignado, depois de ouvir mais um dos discursos de seu pai sobre a conveniência de se viver naquela toca. Todos se calaram, olhando surpresos para o ratinho. Seus irmãos, sem entende-lo, bem mais impressionados com a forma que aquelas palavras foram ditas do que propriamente com o seu conteúdo, iniciaram um coro de risotas abafadas. Sua mãe, com um misto de indignação pela insolência daquilo que considerou uma afronta à perfeita ordem familiar, medo pela possível reação do marido contra o filho, e angústia por ver que se agravavam os distúrbios no pequeno filhote, olhou aflita para o marido. Já seu pai, percebendo sua autoridade questionada pela primeira vez, não sentiu outra coisa se não medo, enquanto olhava fixamente o filho, de pé, a sua frente. Todos julgaram esta como mais uma extravagância do filhote cinzento, e num consenso silencioso, ignoraram-no, e voltaram a roer, cada um, seus grãos de milho.

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Os dias passaram, e o ratinho percebeu que já não adiantava argumentar. Ninguém nem ao menos se dava ao trabalho de prestar atenção ao que ele dizia. Sua mãe fugia sempre que ele lhe procurava e tentava falar sobre o perigo, para ele óbvio, que o córrego representava. Seus irmãos riam dele e faziam escárnios de sua cara de aflição, enquanto tentava esclarece-los sobre os perigos daquelas águas nos dias de chuva. Quanto a seu pai, o ratinho nem mais tentava se aproximar, pois desde o dia em que o questionou diante de todos, este passou a tratá-lo com toda a frieza e distanciamento possíveis. Enquanto isso, não passava um dia sem que todos exaltassem as maravilhas da nova toca. Em silêncio, o ratinho os observava sorrirem, alheios ao ruído constante da correnteza lá fora.

***

Desde a tarde o ratinho a esperava. Viu as nuvens cor de chumbo se abaterem sobre o campo e sorriu com amargura.

Entrou na toca, observou os ratinhos brincando como sempre, despreocupados. A ratazana arrastando mais uma espiga de milho, e o pai, agora já bem mais gordo do que no dia em que chegaram, roendo outro grão. Pensou em dizer algo, numa última tentativa. Falar, falar desesperadamente. Implorar se fosse preciso... Chegou a balbuciar algumas palavras que se perderam em meio ao ruído da algazarra dos irmãos. Pensou no quão divertido era pra eles, sempre que tentava falar sobre o córrego. Pensou na incapacidade, e no desinteresse da mãe em tentar compreender a relevância daquele assunto. E principalmente, lembrou do descrédito que seu pai lhe dera desde o início. Acabou virando as costas e saindo da toca sem ser notado por ninguém. Foi para o campo buscar um abrigo, e lá se enfiou entre algumas pedras altas e cobertas, esperando a chuva cair.

À noite, a chuva finalmente veio, pesada e torrencial, e as águas do córrego, como em todos os córregos, subiram.


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2 comentários:

  1. Ótima fábula Luiz, e como toda boa fábula, com multiplas camadas de leitura, que vai desde aquilo que envolta o indivíduo, até grupos humanos maiores, sociedades, países, civilziações.

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    1. Valeu pelo feedback, Amaweks. Esse conto tem mais de vinte anos e, pelo visto, ainda funciona.

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