O AUTO DO QUATI
Mesa da Inquisição dos Cordeiros.
O Cordeiro Visitador, erguendo-se disse:
- Em nome de Nosso Senhor dos Cordeiros e da Santa Madre Igreja dos Cordeiros, vós, Quati, estais aqui para confessar vossas culpas e delitos contra a Fé dos Cordeiros, cometidos no tempo em que vivestes entre as serpentes. Dizei, pois, a verdade, sem ocultação, pois só assim alcançareis misericórdia diante deste Tribunal do Santo Ofício.
Quati (de cabeça baixa):
- Merçê, Senhor Visitador… Eu venho de minha livre vontade, arrependido de meus pecados, e peço perdão à Santa Igreja. Juro pela alma de minha mãe que nunca neguei ao Grande Cordeiro, ainda que… ainda que tenha caído em grandes erros.
Cordeiro Visitador (severamente):
- Declarai então esses erros. Começai pelo princípio: como caístes em companhia daquelas bárbaras criaturas?
Quati:
- Senhor, foi há muito tempo… andavaeu numa bandeira com o tamanduá quando nos metemos pelo sertão. Ao fim da jornada, os outros voltaram, mas eu… fiquei. Não por maldade, mas por fraqueza. As serpentes me acolheram, e eu, como um pobre desamparado, aceitei seu abrigo.
Cordeiro Visitador (interrompendo):
- E nesse abrigo, esquecestes os mandamentos do Deus Cordeiro? Participastes de seus ritos pagãos?
Quati (gaguejando):
- Eu… eu me arrastei como elas, sim, Senhor, mas só para não levantar suspeitas! Nunca adorei seus ídolos!
Cordeiro Visitador (escrevendo, voz grave):
- E os feitiços da anaconda? Comestes carne de quati nos banquetes das cobras?
Quati (sudorese, voz acelerada):
- Nunca, nunca, Senhor! Eu fingia comer, mas escondia toucinho no prato… só mastigava o porco! Juro pela Paixão do Grande Cordeiro! E quanto às festas da sucuri, eu ia por medo, mas nunca acreditei em suas mentiras diabólicas!
Visitador (erguendo a voz):
- E as guerras das cobras contra os cordeiros? Confessai que levantastes armas contra os cordeiros!
Quati (tremendo):
- Merçê, Senhor… eu lutei ao lado das cobras, sim, mas nunca matei cordeiro algum! Só defendia a tribo, como um irmão… E depois, fui capturado no arraial, quando as cobras atacaram os cordeiros. Foi o Deus dos Cordeiros que me tirou dali!
Visitador (suspirando, desconfiado):
- E os dias santos? Guardastes todos os dias consagrados ao Cordeiro Pai?
Quati (envergonhado):
- Não, Senhor… comi insetos em dias proibidos. Mas era a fome, a vida rude do mato…
(Longa pausa. O Cordeiro Visitador fixa o Quati, depois baixa os olhos para os papéis.)
Visitador (frio):
- Há mais algo a confessar? Lembrai-vos que a omissão é pecado mortal.
Quati (quase inaudível):
- Houve… houve uma quati-fêmea, Senhor. Pecamos contra a natureza, pela frente…
Visitador (batendo na mesa):
- Nefando! Isso é sodomia, crime abominável!
Quati (chorando):
- Arrependo-me, Senhor! Juro que nunca mais… Peço penitência e absolvição!
Visitador (após silêncio, ditando a sentença):
- Pela vossa confissão no Tempo da Graça, escapais ao cárcere e ao fogo. Mas ficai proibido de voltar ao sertão. Confessai-vos mensalmente no Colégio dos Cordeiros, e rezai três patas diárias pela vossa alma pecadora. Assim esperamos que vos emendeis.
Quati (beijando as patas do Cordeiro Visitador):
- Graças, Senhor… Graças à Misericórdia Divina.
O escrivão registra. O Quati é levado para fora, aliviado, mas ainda sob o olhar atento dos irmãos da Inquisição dos Cordeiros do Santo Ofício.
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