terça-feira, 22 de abril de 2025

12. UMA HISTÓRIA SEM DRAGÕES



UMA HISTÓRIA SEM DRAGÕES


Agora estamos em meados da década de oitenta.

Talvez oitenta e cinco. Talvez oitenta e seis.

Mas isso não importa.

O século é o vinte.

Isso, pelo contrário, importa.

O século vinte foi uma época excepcionalmente estúpida.

Lá longe, na parte importante do mundo, as pessoas se ocupam com coisas que lhes dão pouca satisfação, muita angústia e que, frequentemente, lhes deixam apavoradas. Essas coisas tem nomes estranhos. Na TV, velhos de terno e gravata sempre falam da Rússia. A Rússia é um lugar distante e indeterminado.

Muitas dessas pessoas gostam muito de dinheiro também.

Dinheiro são papeizinhos coloridos.

E dinheiro é uma coisa extraordinariamente importante durante a década de oitenta.

Nesta história, falaremos sobre um garoto que resolve comer lama.

Não estamos na parte mais importante do mundo. Estamos realmente bem longe dela.

Este é o quintal de uma casa que pertence a algumas pessoas que não tem muito dinheiro. Essas pessoas são uma família. Uma família são diversas pessoas que vivem juntas e que dão de comer umas às outras.

Acabou de chover neste lugar.

Nesta parte não muito importante do mundo as pessoas também se preocupam com muitas coisas. Essas coisas também tem nomes estranhos. Na TV, velhos de terno e gravata sempre falam de fome.

E sobre dragões.

Dragões eram monstros alados que vomitavam fogo pela boca.

Esta história não tratará de nenhum dragão.

A criança brincando na lama tem um nome comum.

Depois dos temporais, ela. gosta de amassar a lama com as mãos.

Ela quase sempre está sozinha e, talvez por isso, tenda a pensar muito. Muito.

De vez em quando, dependendo do seu estado de espírito, uma das coisas que ela. imagina enquanto brinca é que, por alguma razão, a mistura de terra e água torna-se algo muito parecido com chocolate. Chocolate é uma coisa doce e boa.

Ela gosta muito de chocolate.

Ela sente vontade de comer lama.

Ela, no entanto, sabe por experiência própria, que, se tentar comer lama, irá se arrepender. Isto porque, apesar das aparências, lama não é o mesmo que chocolate.

Ela não se importa. A lama que lhe parece chocolate é muito convidativa. Ela, então, coloca um pouco de lama na boca. Por um segundo (talvez mais, talvez menos), a criança imagina estar comendo chocolate de verdade e não terra molhada.

O seu esforço de imaginação, por sua vez, é quase eficaz.

Quase.

Rapidamente a realidade se impõe.

O gosto da lama não é, nem de longe, parecido com o do chocolate. O sabor e a textura daquela massa marrom e grudenta é, na realidade, o de areia e coisa podre. A criança cospe tudo de volta ao chão, enojado, enquanto a quase sensação boa se desfaz.

Mas a criança continuará gostando de brincar com lama. E, às vezes, de prová-la. E ela também continuará gostando de comer chocolate.

Daqui há algum tempo (meses? anos?), a criança irá até o supermercado com o seu pai. Um supermercado é um lugar grande, cheio de coisas e onde adultos trocam o seu dinheiro por coisas.

Nesta ocasião, a criança pedirá ao homem que lhe compre um chocolate de verdade. “Não”, será a resposta.

A criança ficará, inicialmente, triste.

Ela protestará.

- “Por que, pai?”.

O pai da criança. ainda será um homem jovem, mas que já estará cansado. Ele não é mau (não mais do que a maioria dos adultos), mas ele costuma se aborrecer fácil com perguntas. As perguntas daquele serzinho o amolam particularmente porque são de uma criança. O homem, por alguma razão, responderá ironicamente à pergunta da criança. Ele dirá mais ou menos o seguinte:

- “Não compro porque o chocolate está muito ‘barato’.” E, em seguida, ele se calará.

A criança agora tem seis anos de idade (ou cinco, ou sete, ou oito...).

Ela ainda será muito jovem e, por isso, ainda não entenderá quase nada, nem de dinheiro e nem de ironias.

Como consequência, ela ficará frustrada e com raiva do pai. A razão disso é a seguinte: de acordo com a sua lógica, caso ela, a criança, possuísse algum dinheiro e eventualmente lhe surgisse a oportunidade de comprar uma porção qualquer de chocolate ela, certamente o faria. E mais: caso esse chocolate fosse “muito barato”, tal como o alegado pelo pai (que era adulto e que, portanto, entendia muito bem de dinheiro) ela não só compraria bastante chocolate para si mesmo, mas também para quem mais o desejasse.

De fato, a criança achava que todos deveriam poder comer chocolate.

Inclusive o pai.

Sim. A criança certamente dividiria o seu chocolate com o seu pai, caso isso lhe fosse possível. Mas isso, é claro, apenas se o seu pai demonstrasse possuir qualquer interesse por chocolate. Algo que, efetivamente, não ocorria.

E, assim, orientado por esses princípios, a resposta do pai à criança. não só lhe parecerá a este último como algo totalmente absurdo, mas, sobretudo, como um ato profundamente injusto. Isto deixará a criança intrigada e magoada por algum tempo.

A criança se calará junto com o seu pai.

Levará ainda alguns anos até que descubra que, às vezes, as pessoas falavam certas coisas querendo dizer, na verdade, o exato oposto daquilo que dizem. As razões disso, contudo, sempre lhe parecerão obscuras.

As pessoas, sobretudo os adultos, parecem misteriosas à criança.

Principalmente o seu pai.

De fato, no supermercado e em casa, frequentemente, o pai da criança. tem e terá muitas atitudes ambíguas e difíceis de se entender.

Isso não mudará nunca.

Agora, a criança continua cuspindo lama.

O dia ainda está nublado.

A lama volta ao chão misturada à chuva e à saliva da criança.

Ela limpa a boca e olha ao redor (o seu medo é o de que algum adulto o tenha visto tentar comer lama).

Adultos sempre ficam bravos pelas razões mais arbitrárias.

Lá longe, bem longe do quintal, na parte importante do mundo, as pessoas continuam se preocupando com coisas que tem nomes estranhos.

Ao redor, na parte não tão importante do mundo, velhos engravatados continuam falando sobre fome.

Fome é algo fácil de se entender.

Ainda estamos em meados da década de oitenta.

O século é o vinte.

Dinheiro é uma coisa extraordinariamente importante durante a década de oitenta.

A criança está vivendo numa época muito, muito estúpida.

Não existem dragões neste mundo.

Talvez existam na Rússia.


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