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Da sala, a T.V. anunciava: “Quando nada mais faz sentido, Nihilox-20® faz!”. Ano corrente. Quatorze de abril. Dezenove horas e trinta e nove segundos. Com passos lentos fui até o armário do banheiro. Dezenove horas e quarenta e dois minutos. Abri-o devagar e fitei por alguns segundos o vidro fosco que repousava ao fundo. Dezenove horas e quarenta e três segundos. Hesitei. Pensei mais uma vez no porquê de estar ali. Ergui o braço e tomei o frasco nas mãos com violência. Nihilox-20®. Dirigi o gargalo à boca e parei antes de alcançá-la. Dezenove horas e quarenta e quatro segundos. O cheiro forte da solução invadiu minhas narinas, me causando náuseas. Dominei-me e, de um só gole, acabei sorvendo metade do conteúdo da pequena garrafa. Dezenove horas e quarenta e seis. O líquido desceu queimando desde de meus lábios até o esôfago, me fazendo ter a certeza de que não seria sem dor que o veneno agiria. Dezenove horas e quarenta minutos, seis segundos e cinquenta e seis centésimos. E assim o foi. Esvaziei o frasco em dois ou três goles. Dezenove horas e quarenta e oito minutos. Busquei o vaso sanitário e sentei-me. Meu ventre ardia. Dezenove horas e quarenta e nove minutos e oito segundos. Sentia minhas vísceras como que estourarem. Dezenove horas, cinquenta minutos e três segundos. Atordoado, vomitei uma gosma verde amarelada sobre mim mesmo. Dezenove horas e cinquenta e quatro minutos e vinte e dois segundos. Pouco depois minha visão se desfez. Dezenove horas e cinquenta e quatro minutos e vinte e dois segundos e quarenta e seis centésimos. Tombei sobre o chão frio de cerâmica sem mais sentir meu corpo. T.V. ligada. Dezenove horas e cinquenta e quatro minutos. Respirar se tornou cada vez mais difícil. Dezenove horas. Senti medo e remorso. Vinte e dois segundos. As últimas coisas que ouvi foram as batidas cada vez mais fracas e irregulares do meu próprio coração. Cinquenta e quatro minutos. Nítidas, perfeitamente nítidas. Cinquenta e quatro minutos. Como jamais o foram até aquele instante para mim. Dezenove horas. As batidas cada vez mais fracas e irregulares. Medo e remorso. Vinte horas. Respirar se tornou difícil. Vinte horas e seis minutos. O chão de cerâmica. Vinte horas, seis minutos, quarenta segundos. Minha visão se desfez. Vinte horas e quinze minutos. Gosma verde amarelada. Vinte horas e trinta minutos. Vísceras. Vinte horas, trinta minutos e dezoito segundos. Meu ventre ardia. Vinte horas e trinta e dois minutos. Vaso sanitário. Frasco. Vinte horas e quarenta e três minutos. Dois ou três goles. O líquido desceu queimando. Vinte horas e cinquenta e dois minutos. Um só gole. Garrafa. Vinte horas e cinquenta e oito minutos. Cheiro forte. Náuseas. Vinte e uma horas. Gargalo. Ergui o braço e... tomei o frasco? T.V ligada. Violência. Vinte horas, seis minutos e cinquenta centésimos. Porquê estar ali? Hesitei. “Quando nada mais faz sentido...” Vinte horas e dez minutos. Abri devagar o vidro fosco. Vinte horas e quinze minutos. Passos lentos. Armário do banheiro. Vinte e uma horas. “… Nihilox-20® faz!”. As batidas cada vez mais fracas. Vinte e uma horas e três minutos. Sanitário. Queimando. Garrafa. Medo. Vinte e uma horas e quinze minutos. Cheiro forte. Remorso. Vinte e uma horas, quinze minutos e cinquenta e três segundos. Nihilox-20. Porquê estar ali? Vinte e uma horas e dezessete minutos. Náuseas. Medo. Vinte e uma horas e dezoito minutos. Remorso. Hesitei. Vinte e uma horas, dezenove minutos e dezoito segundos. Porque… Nihilox… Vinte e uma horas, dezenove minutos e dezoito segundos e cinquenta e cinco centésimos. Fui até o armário do banheiro… Nihilo... Era sexta-feira. Ano corrente. T. V. ligada...
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Já conhecia alguns dos teus contos, mas este não. Me lembrou alguns vídeos que ví, recentes, do Alan Morre, por que ele fala da importância do escritor, e de escrever, e da sua ligação com Magia, no sentido mais estético da palavra, de como a magia e a linguagem possivelmente se desenvolveram juntas. Digo isso por que achei o conto ótimo, e é incrível que em uma época já inundada de estímulos e narrativas visuais que vão do cinema, tv, quadrinhos, videogame, nada disso poderia expressar a sensação de confusão da mente que teu conto suscita e representa. Só o texto, aqui em conto, consegue esse exato efeito estético, e nos termos do Moore "mágico", de forma a invocar no leitor sensações. Muito bom.
ResponderExcluirObrigado, Amaweks. Boa reflexão a sua e a do Moore sobre a natureza "mágica" da linguagem. De fato, existe algo próprio da língua que é a sua capacidade inerente de causar "ações a distância". E isto é a base do fenômeno mágico no geral.
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