2.
HERÓSTRATO
“Sou um homem”., pensou H. “Tenho mais de trinta anos, mas não me sinto adulto. De fato, nunca me senti tão distante do mundo dos adultos quanto nesses tempos.”
“Envelheci para descobrir que o mundo das pessoas maiores não é tão diferente do que o das crianças. Sua linguagem pode ser diversa, seus brinquedos mais caros, mas, de modo geral, as motivações reais e os principais problemas são todos muito parecidos. A maioria dos adultos que conheço, no entanto, não são essencialmente diferentes das crianças. Na verdade, a maioria dos adultos que conheço se considera extraordinariamente especial. E isso com relação a qualquer outra pessoa do mundo.”
“Toda essa pretensão é algo que me parece muito incômoda.”
“Estou convencido de que não sou especial.”
“Ainda moro na casa dos meus pais.”
“Não tenho muitos brinquedos de adulto.”
“Tenho motivações pouco sérias aos olhos das outras pessoas adultas.”
A arma calibre 38 comprada no mercado negro precisava de óleo. O gatilho ainda travava.
O cara que vendeu não ofereceu nenhum detalhe sobre o passado do objeto. Ela tinha pouco uso e o número de registro raspado.
Era o que bastava.
A compra, na época, custou-lhe meio mês de salário. Hoje custaria mais.
A primeira vez que H. viu uma arma foi na TV, num filme americano.
“Devo fazer coisas que tenham sentido. E não simplesmente satisfazer as expectativas de outras pessoas velhas.”
A maioria das pessoas adultas que H. conhecia fazia muitas coisas sem sentido, segundo ele. Elas achavam que fazendo essas coisas poderiam, quem sabe, ser tão especiais quanto gostariam de ser. O cheiro de SLIP 2000 EWL, óleo lubrificante de alta performance para armas em geral, encheu-lhe as narinas.
Gostava desse cheiro.
“A maioria delas fracassa miseravelmente na execução desses planos. Suspeito mesmo que a maioria tenha consciência dessa futilidade. Acho que elas se sentem mal com isso. De fato, a maioria das pessoas adultas passam a vida tentando convencer outros adultos de que elas não se sentem mal fazendo coisas sem sentido.”
Testou o gatilho. Agora sim. O dedo mal precisava fazer esforço para se ouvir o click.
“Tudo isso é inútil.”
Na TV, um comercial de carros. Em seguida, outro de amaciante de roupas. Depois, mais um de pasta de dentes.
Agora, H. era adulto, também. Ele poderia ter alguns brinquedos de adulto, se quisesse, mas não se interessava muito por eles.
“Aprendi a dirigir uma vez, mas achei aquilo estressante. Eu tinha muito medo de machucar alguém na rua.”
A maioria dos adultos que H. conhecia não tinha problemas com o risco de machucar outras pessoas.
Testou a empunhadura do revólver.
Mirou no rosto de James Dean pendurado na parede do quarto. O olhar triste do galã morto o comovia. A imagem de Jim Morrison, ao seu lado, apontando o dedo contra o espectador soava-lhe entre acusatório e revelador de um destino.
“Tenho mais de trinta anos. Trinta e três, para ser preciso.”
Era seu aniversário. H. imaginou que trinta e três anos fosse uma idade bonita para se morrer. A maioria dos adultos que H. conhecia não tinha problemas em desejar a morte de outras pessoas. Algumas pessoas que H. conhecia também não tinham problemas em desejar a própria morte.
“Trinta e três anos”, repetiu mentalmente, e olhou para o crucifixo herdado da avó.
H. imaginou que essa fosse uma idade bonita para alguém morrer.
A maioria dos adultos que H. conhecia achava que era essencialmente diferente das crianças. A pretensão dos adultos era algo que incomodava muito a H.
Acomodou a arma na cintura. A camisa de operador de caixas por sobre o 38.
Desligou a TV antes de sair.
Um comercial anunciava a décima Black Friday do ano.
O som insignificante do controle remoto mirado contra a tela do televisor lhe ressoou como uma explosão.
“Tenho trinta e três anos”, pensou H., “uma bela idade para o martírio”.
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