PARTE I:
MEMÓRIA CORROMPIDA
1.
REMIX DAS ENTRANHAS
Dia 21 de junho de 2013. Noite. Cerca de 89 mil pessoas participaram de manifestações em 13 cidades de Santa Catarina, segundo a PM. Na maioria, protestos pacíficos - apenas dois casos registrados de depredações: Florianópolis e Joinville. Caminhavam lentamente pelas ruas ainda agitadas, os gritos distantes se misturando ao trânsito. Ele, com a camiseta preta de rock amassada e o cabelo revirado pelo vento, carregava uma faixa vermelha, pintada a mão, enrolada debaixo do braço. Ela ajeitava os óculos de aro de acetato, segurando um copo reutilizável vazio ainda cheirando a cerveja, o olhar perdido entre os prédios e o céu escuro. Falavam sobre política, mas havia algo mais no ar, nas inflexões, nos gestos - um tom leve, quase brincalhão, que traía o desejo nas entrelinhas. Florianópolis, Joinville, Jaraguá do Sul, Xanxerê, Pinhalzinho, Criciúma, Imbituba, Itajaí, Blumenau, Rio do Sul, Lages, Curitibanos e São Joaquim. Na capital, um jovem caiu da Ponte Colombo Salles. Um policial militar foi atingido por uma pedra. Trinta mil, segundo o governo. “Concordo com quem diz que este é um daqueles raros momentos em que a sociedade se politiza em massa” - ele disse, olhando para ela de soslaio, como quem testa uma reação ou avalia um terreno. Trinta mil em Florianópolis. As pontes de acesso à Ilha fechadas por cinco horas. Manifestantes ocuparam o local às 19h. Três horas depois, um grupo ainda insistia. Ela sorriu, balançando a cabeça e, com a mão, num gesto gracioso, ajeitou os cabelos castanhos. A PM negociou. Mesmo com a liberação de duas faixas da Ponte Pedro Ivo, por volta das 23h, os veículos continuaram parados. Bloqueio na cabeceira. “Tudo isso lembra os anos 1870, 1880… 1920, 1930… início dos 60 “, ela contou nos dedos, fingindo esforço. “E claro, o fim dos 70, começo dos 80. Até 1989 e 1992 entram aí nessa conta. A gente tá vivendo uma espécie de, sei lá, 'remix histórico', né?” Veículos só passaram às 23h30. Às 23h50, confronto. Ponte Colombo Salles liberada à 0h07. Ele riu, inclinando-se para ela. “Um remix caótico, mas com uma boa trilha sonora. As passeatas hoje tinham até batucada! Enfim, mas, pra mim, o paralelo mais forte é com 1870, 1880: crise do Império.” Estudantes da UFSC fizeram cartazes às 14h. Às 15h30, foram para o Terminal da Trindade. Pegaram ônibus sem pagar. Desceram no terminal (TICEN). Ela ergueu a sobrancelha, provocadora. “Quer me impressionar com aula de história também? Tá funcionando. Continua.”. Ele sorriu sem jeito, sabia que ela entendia muito mais do assunto que ele, mas prosseguiu sério: “ Instituições em descrédito total. Igual agora. E a classe média pressionando por reformas - trabalho livre, democracia… Tudo pegou fogo no Brasil naquela época.” Às 17h, chegaram ao TICEN. Em menos de 30 minutos, a multidão fechou a Avenida Paulo Fontes. Seguiram para a Assembleia Legislativa, Beira-Mar Norte, depois bloquearam as pontes. Grupos com bandeiras de partidos diversos tomaram outro caminho. “O sentimento era difuso”, ela completou com os olhos brilhando.” Conservadores, liberais, radicais… todos gritando juntos. Igual hoje. Viu aqueles cartazes totalmente contraditórios cantando a mesma música?” Jovem de 19 anos caiu da ponte. Socorrido. Estado estável. PM ferido por pedra. “Vi”, ele respondeu, rindo. “E no fim? Golpe militar, república autoritária, abolição meia-boca… Mas foi desse caos que saíram as greves de 1917, os sindicatos anarquistas, os comunistas. Não veio de fora. Veio das nossas entranhas.” Pichações na Prefeitura. Rua Conselheiro Mafra. Ela parou, virando-se com um sorriso malicioso. “’Das nossas entranhas’? Tá poético hoje. A manifestação te inspirou.” Em Criciúma, protesto começou às 18h30. Parque das Nações para o Centro. Mais de oito mil, segundo a PM. Ele encolheu os ombros, novamente lhe veio o rubor nas bochechas. “O país tá se repensando a fórceps. Vamos ver de tudo nos próximos meses… Anos, espero.” Itajaí: concentração na Rua Sete de Setembro. Saída marcada para 17h30, mas poucos compareceram. Às 17h55, partida. Três mil, segundo a PM. “Eu também espero”, ela disse, retomando o passo. “Até os ‘sem partido’ vão ter que escolher. As esquerdas, mesmo brigando entre si, vão ter que se reinventar. Já tá sentindo esse clima?” No Oeste, Pinhalzinho, Abelardo Luz e Xanxerê. Maior protesto em Xanxerê: duas mil pessoas na Praça Tiradentes. Abraço coletivo, hino nacional. Nenhum incidente. Ele a olhou um instante a mais. Seus olhos fixaram nos dela. “Tô sentindo um clima, sim. Mas não sei se é só política.” Pinhalzinho: 200 pessoas sob chuva. Abelardo Luz: protesto adiado para sábado. Ela riu, empurrando seu ombro. “Tá bom, ativista galanteador. Prever o futuro é futurologia, e eu não curto futurologia.” Lages: protesto às 17h em frente à Catedral. Hino Nacional, praça lotada. Oito mil pessoas. “Nem eu”, ele respondeu com meio sorriso. “Mas acho que esse momento vai deixar herança. Mesmo no pior cenário, vão lembrar de um instante radicalmente democrático. Cheio de vozes dissonantes.” Ela sorriu e disse num tom quase malicioso: “Dissonância é o que torna as coisas interessantes. Na política… e fora dela.” Joinville: bloqueio no cruzamento João Colin e Princesa Izabel. Protesto pacífico, um incidente. Letreiro da Prefeitura destruído. Às 21h30, ruas vazias. Ele riu. Os dois seguiram caminhando até a primeira esquina. Na calçada, antes de tomarem caminhos distintos, ele tentou beijá-la. Ela esquivou-se sorrindo. Amanhã talvez. Do outro lado da rua, um catador de latinhas seguiu seu trabalho iluminado pelo giroflex de um camburão da polícia.
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