OSSOS DE POLÍMERO
"Vamos inventar o amanhã e parar de nos preocupar com o passado."
- Steve Jobs (Discurso à Apple, 2007).
Chamo-me Zor. Sou um sobrevivente num mundo que se suicidou.
É o que eu vejo ao olhar pra mim e ao meu redor.
E não me comovo mais.
Andros serviu a dose sem olhar pra minha cara.
Sabia que eu não tinha crédito, mas às vezes deixava eu ficar ali só pelo barulho. Eu era o móvel quebrado enfeitando o canto do bar dele quando todas as coisas que infestavam a noite já tinham voltado pros seus esgotos.
- Tu sabes o que é guardar parte do teu próprio esqueleto interno num bolso, Andros? - perguntei tentando provocar uma conversa e sacando a minha caixinha de munição que eu uso como porta coisas.
O barman, sem responder, olhou o borg cheio de implantes no crânio, do outro lado do balcão. O ciberviciado girou a cabeça como se estivesse em outro mundo. Acho que estava mesmo conectado em alguma rede neural. Era comum alguns ficarem ali praticando voyerismo on-line.
Andros limpou um copo com o mesmo pano podre de sempre.
- Tá cheirando pilha de novo, Z?
Abri a caixa. Dentro, três fios de cobre e um osso de polímero que já foi meu joelho direito.
- Comprei esse joelho quando tinha 48 ciclos. Tava trabalhando na usina de reciclagem 3. Trocava filtro de césio 12 horas por dia. Aí um cilindro vazou e comeu minha perna.
O Andros parou de limpar o copo.
- Me deram esse osso de presente quando me aposentei. Disseram que era "gratidão da Empresa". - Dei uma risada que virou tosse. - Três meses depois, suspenderam minha aposentadoria por corte de gastos. Eles precisavam de todo o lítio disponível, eles disseram.
Joguei o osso no balcão. Ele rolou. Andros olhou com indiferença.
- E aí tu ficou com o osso e eles ficaram com os créditos de lítio?
- Fiquei com o que importava. Meu ex-patrão enfiou uma bala nos miolos no ano seguinte. Ele era humano. Não me pergunte porquê fez isso.
O silêncio de Andros foi a única resposta.
- Existem muitas maneiras de ser feito em pedacinhos, Andros.
O bar ficou quieto. Só o zumbido do freezer quebrado enchendo o ar. Andros devolveu meu joelho e serviu outra dose.
- Essa é pra tua coleção de ossinhos, Z.
Bebi de um gole. Ardia como óleo. Acredito mesmo que 30% daquilo era óleo queimado.
Coloquei de volta o osso na minha caixa de munições. Guardei ao lado de um canivete e um teaser velho.
Preciso sempre lembrar: chamo-me Zor.
Sou um robô Classe C da Vanguard Steel Corporation. Meu número de fabricação é 6.882.799 e fui operário 24/7. Hoje estou obsoleto, danificado e sobrevivendo de pilhas descartadas num mundo que já se suicidou e quer esquecer isto.
É o que eu vejo ao meu redor.
“São apenas humanos”, digo para mim mesmo, “são seus bugs’.
Do lado de fora, um dron de vigilância passou clareando a rua.
Deixei que iluminasse minha caneca vazia - meu único espelho nesses tempos que descartam e esquecem seus próprios ossos.
Sintéticos ou não.
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